Estupro em Lado a Lado: aula de feminismo e boa dramaturgia

Texto de Charô.

Quando ‘Lado a Lado‘ começou não tinha ideia de como essa novela seria importante. O grande feito da trama de Cláudia Lage e João Ximenes Braga é uma delicada combinação de apuro técnico, excelente pesquisa histórica, entretenimento e a denúncia do racismo e do machismo (hoje quase todas as novelas falam sobre algum assunto sério, Salve Jorge, por exemplo, aborda o tráfico de pessoas).

Toda semana acontece alguma coisa digna de nota, afinal, não é todo dia que uma novela se propõe falar de questões que muita gente prefere fingir que não existe. Porém, o capítulo de ontem foi excepcional e histórico. Um estupro, com direito à menção das questões de consentimento, foi mostrado em todo seu horror em plena novela das seis. Dá para acreditar? Como disse, estou sob forte emoção e tentando entender o que aconteceu.

Você pode assistir as cenas aqui e aqui.

Um breve resumo da trama. Laura (Marjorie Estiano) é, junto com Isabel (Camila Pitanga), uma das personagens principais. Uma mulher que luta por sua independência no início do século XX. Laura é filha de família rica, que muito jovem casou. Porém, mesmo amando seu marido, Edgar (Thiago Fragoso), ela não aceita o fato de ele ter uma segunda família e pede o divórcio. Por ser uma mulher divorciada numa sociedade extremamente machista, Laura é renegada pela família e tratada como uma prostituta pelas pessoas. E a consequência mais pavorosa disso, é a tentativa de estupro que sofre.

Laura, após ser assediada pelo patrão para jantar a sós com ele, decide pedir demissão. Porém, ele diz que não aceita. Foto: Globo TV/ Divulgação.
Laura, após ser assediada pelo patrão para jantar a sós com ele, decide pedir demissão. Porém, ele diz que não aceita. Foto: Lado a Lado/TV Globo.

A conceituação do estupro

Um estupro em plena novela das seis foi comentado por todas feministas com muita emoção, algumas choraram acompanhando o desenrolar do conflito. Certamente todas ficamos muito felizes a despeito de toda a crueldade da cena, que mostrou a protagonista Laura, uma jovem professora divorciada em busca de dignidade numa sociedade extremamente machista, sendo estuprada por um senador da República que lhe oferecera emprego.

Ele se mostra contrariado e confessa que ofereceu o emprego com a intenção de ter relações sexuais com a protagonista, afinal jamais contrataria uma mulher para ser sua secretária — para isso ele teria preferido um homem. Um dos detalhes felizes é que a opressão sofrida por mulheres no mercado de trabalho continuará a ser retratada no folhetim.

“Não banca a donzela comigo, eu sei o que deseja uma mulher experiente e divorciada. E tô disposto a provar isso, com o seu consentimento, ou não”, ameaça o político.

A cereja do bolo foi o uso da à palavra consentimento, uma alusão ao conceito de estupro como toda ação, com ou sem penetração, feita sem a anuência do outro. E, justamente por causa disso, foi possível mostrar que até mesmo o ato de abraçar uma mulher (ou homem), sem que tenha havido o consenso, é uma violência. Uma violação posto que a vontade e o corpo de ninguém me pertence. E aí que mora a beleza do feminismo, a ideia de que é necessário.

A conceituação tão apurada da violência pode ser considerada um mero detalhe. Mas, também pode ser uma oportunidade para que repensemos não somente a condição da mulher, mas de todo indivíduo que esteja em posição de vulnerabilidade. Só para falar de um caso muito prático e que me diz respeito pessoalmente, quero falar muito rapidamente do modo como eu e meu parceiro nos relacionamos com nossa filha.

O estupro televisionado foi exemplar por mostrar tudo aquilo que não queremos para nós mesmos e para ela, que mesmo tão pequena já entende e reproduz qualquer ato de violência presenciado. Para que ela me respeitasse foi preciso que eu desse o exemplo e a tratasse como ums indivídua, como sujeita dos mesmos direitos que quero para mim e que tanto defendo na minha fala.

Porém, voltando a novela em si, outra característica bacana da cena foi exemplificar que a recusa do outro não precisa e não deve ser negociada ou justificada. Laura, como eu e você, temos o direito de dizer: não! Sem termos de nos explicar. Costuma-se dizer que uma mulher que abriu a porta da sua casa e se deitou na cama tem o direito de dizer não até o último minuto, pois pode se arrepender durante o ato sexual.

Laura é agarrada pelo Senador Laranjeiras. Foto: Lado a Lado/TV Globo.
Laura é agarrada pelo Senador Laranjeiras. Foto: Lado a Lado/TV Globo.

O feminismo faz bem para mim e para todo mundo

No mundo ideal, se as questões de consentimento merecessem o devido respeito, dizer “não!”, não seria um problema. Porque a mulher não foi feita para suprir quaisquer necessidade do homem, mas sim para viver e se relacionar com quem lhe aprouver. Porque o “não!” significa: não! A insistência egoísta configura a prática do estupro. Porque nenhuma violência deve ser tolerada.

O estupro de ‘Lado a Lado’ também foi especial por ter ido até o fim. Houve a recusa, foi claramente delineada a violência e foi mostrado o depois — Laura sofrendo as consequências do estupro. O mais comum é que a mulher diga “não!” e o homem, só para situarmos nos universos ainda heteronormativos das novelas, insista até arrancar um beijo a contragosto.

Muitas vezes os estupros se desenvolvem em conciliações na cama, como se fosse aceitável que os problemas dos casais fossem sublimados, como se fossem automaticamente resolvidos com uma trepada mais acalorada. Se isso costuma acontecer com você mulher, não aceite e questione o que muitos acreditam ser uma prática sem maiores consequências.

Hora de repensar a ideia de que novelas são chorumes culturais, produções de menor monta. Essa lição aprendi com as feministas. É possível ver novela e se informar, isso tudo quando os autores são realmente bons e não insistem em dramalhões inverossímeis, embebidos numa psicopatia sem eira nem beira. O estupro em ‘Lado a Lado’ foi mostrado em todo seu horror, uma aula de feminismo e boa dramaturgia.

Nós, feministas, estávamos lá para ver e aplaudir. Parabéns à toda equipe envolvida.