Mulheres negras e a bunda de Kim Kardashian

Texto de Felipe de Amorim.

Quer dizer que é um absurdo as pessoas estarem falando sobre a bunda da Kim Kardashian? Quando botaram um robô no cometa, morreu o poeta e sei lá qual estripulia idiota um dos deputados direitosos fez só para você fazer propaganda de graça para ele? Sei lá. Vejamos. Deixa eu falar um pouco sobre a bunda da Kim Kardashian.

A foto de Kim Kardashian para a revista PAPER foi feita por um cara chamado Jean-Paul Goude. Esse homem é uma instituição. Ex-diretor de arte da revista ESQUIRE durante a década de 70, ele passou os últimos trinta anos capitaneando propagandas publicitárias para as maiores marcas europeias, incluindo aí: Chanel, Prada, Perrier e Citröen. Goude também foi um dos primeiros fotógrafos famosos a utilizar manipulação digital para criar fotos… a foto de Kardashian abrindo uma garrafa de champanhe, cujo conteúdo faz um arco no ar e cai em um copo equilibrado sobre sua bunda, é uma nova versão de uma foto que Goude fez originalmente em 1976, com a modelo negra Carolina Beaumont. E é aí que nos aproximamos do problema.

Fotos de Jean-Paul Goude. À esquerda, “Champagne Incident”, de 1976 com a modelo negra Carolina Baumont. À direita, a foto com Kim Kardashian para a Revista Paper.
Fotos de Jean-Paul Goude. À esquerda, “Champagne Incident”, de 1976 com a modelo negra Carolina Baumont. À direita, a foto com Kim Kardashian para a Revista Paper.

A despeito de toda sua longa carreira, Goude talvez tenha deixado maiores marcas na cultura popular por ter sido o empresário/amante de Grace Jones, a modelo/cantora/atriz que teve considerável sucesso no início da década de 80. Foi Goude quem criou o visual e a persona artística de Jones, e quem fotografou e fez o design de suas capas de discos. A semântica visual retratada não fugia disso: o corpo negro feminino em poses impossíveis que ressaltavam virtudes atléticas ou proeza física. As expressões variavam entre a afetação de uma ferocidade animalesca ou de uma servilidade contente. Era o mesmo tipo de imagens, calcadas em estereótipos racistas, que podemos encontrar, por exemplo, na obra fotográfica de Leni Riefenstahl. Uma redução da negritude à mera fisicalidade, ao animalesco, tudo retratado como um processo positivo. E, se faltava maior evidência para encerrar o assunto, já no fim de sua parceria afetiva e profissional com Jones, Goude lançou um livro de fotos reunindo seu trabalho com ela. O nome do livro era “Jungle Fever”, e tinha Jones nua, na capa, rosnando dentro de uma jaula.

O corpo negro feminino é vítima de um processo desmoralizante e abusivo de exotização desde os primórdios do colonialismo. As imagens, tratadas digitalmente, que ressaltam a bunda de Kim Kardashian, e, antes disso, a bunda de Carolina Beaumont, remetem diretamente à bunda de Sarah Baartman, a mulher khoikhoi retirada do sul da África para ser exibida em circos em Londres e Paris, sob o nome de Vênus Hotentote. Seu amplo e natural traseiro lhe rendeu o mesmo tipo de atenção dedicado ao pobre Homem-Elefante e a outros portadores de deformidades físicas da era Vitoriana. Após morrer, aos vinte e cinco anos de idade, seu corpo foi dissecado e comparado ao de um orangotango e sua genitália, preservada, foi mantida em exposição junto com seus restos mortais em um museu parisiense até meados da década de 70 do século passado… até a dignidade de um enterro lhe foi negada.

Agora, Kim Kardashian não é negra; sua ascendência mais imediata é anglo-saxônica e armênia. Ela também não aparece nas fotos da revista PAPER em posição servil. Ela está bem vestida, usa joias, e está rindo… não fazendo cara de sedução ou subserviência. É possível, a princípio, interpretar essas fotos de forma positiva, como a imagem de uma mãe de família bem de vida desfrutando de forma prazerosa da própria sexualidade. Sem dúvida, uma grande maioria dos críticos dessas imagens queria apenas lhe negar esse direito. Mas, não deixa de ser preocupante que, na hora de realizar as fotos, a opção de Goude para celebrar a beleza e sexualidade de Kim Kardashian foi ressuscitar imagens plenas de significados funestos. Será que Goude não aprendeu nada e ainda, anos depois, permanece comprometido com um imaginário racista, fetichizador e degradante? Será que houve uma tentativa deliberada de ressignificação? Ou será que o abuso aos negros, e às mulheres, está tão profundamente arraigado na nossa cultura que, mesmo com as melhores das intenções, não é possível tirar uma simples foto de uma bunda sem resvalar nos horrores de centenas de anos de exploração, humilhação, exclusão e genocídio?

Eu não tenho nenhuma dessas respostas. Mas são temas cruciais a serem contemplados por nossa sociedade. O que demonstra que a bunda da Kim Kardashian pode sim motivar discussões muito relevantes. Da mesma forma como é possível falar muita besteira sobre cometas.

Autor

Felipe de Amorim é escritor e cineasta. Se formou em História, pela Universidade de São Paulo. Esse texto foi publicado originalmente em seu perfil do Facebook em 14/11/2014.

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