JMJ: manual de bioética e os catolicismos possíveis

Texto de Leticia Zenevich.

Antes de começar, um aviso: este artigo não é contra o catolicismo. Não é contra a fé religiosa, qualquer que seja. É contra privilegiar em uma religião — de milhares de anos, que tem a profundidade, a complexidade e a pluralidade de cada um de seus fiéis, de cada parte de sua história — uma visão de ódio e intolerância, em vez de promover tantos outros valores positivos promovidos pela fé católica.

Explico. Apesar da mensagem do Papa ter sido bem querida e aberta, sem entrar em temas polêmicos, os folhetos distribuídos pela igreja católica fizeram justamente o contrário. Os 350 mil folhetos do “kit peregrino”, que foram dados a participantes da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) tornam claras as posições que cristãs e cristãos devem tomar: ser contra a homossexualidade, ser contra o aborto, ser contra as famílias não-tradicionais, contra a eutanásia, contra a inseminação artificial e contra pesquisas com células-tronco embrionárias.  Contra, contra, contra. Seguir o catolicismo é ser a favor de quê? Os folhetos não dizem. O importante é elencar inimigos contra as quais jovens católicas e católicos devem lutar.

A publicação apresenta aos participantes das celebrações perguntas como: “Todos os modelos familiares seriam válidos, desde que a criança seja amada?”.

Logo abaixo, vem a resposta elaborada pela Igreja, contrária a famílias formadas por casais do mesmo sexo: “Naturalmente, é essencial ser amado pelos pais, mas não basta. (…) Sejamos realistas: nascemos menino ou menina. A procriação necessita de pai e mãe. A criança precisa de pai e mãe para se desenvolver”. Referência: Kit orienta peregrinos sobre tabus da igreja.

Capa do Manual de Bioética distribuído aos participantes da JMJ. Divulgação.
Capa do Manual de Bioética distribuído aos participantes da JMJ. Divulgação.

Ser cristã ou cristão, para a Igreja católica brasileira, é se preocupar mais em vigiar o útero de uma mulher do que o próprio coração. Ou seja, ‘Jesus Te Ama’, exceto se você for mulher, homossexual, fruto/gerador de inseminação artificial ou viver em um relacionamento que não seja matrimonial. Ufa! Sobrou tão pouca gente para amar que não precisa tanto amor assim. Com toda essa lista de podes e não podes, esses folhetos demandam mais ódio do que amor de seus súditos.

Ora, pode-se argumentar; a crença católica fala de outras coisas, como amor ao próximo e solidariedade. É verdade. Porém, nos folhetos impressos, esses princípios são solenemente ignorados. O que a igreja católica brasileira preferiu, dentre todos os valores cristãos, dentre todos os catolicismos possíveis, foi sublinhar a intolerância e o preconceito.

Alguns acreditam que a visita do Papa seja uma boa estratégia para combater o crescimento dos evangélicos, que seriam mais radicais. Porém, não vejo diferença, porque a arquidiocese escolheu, exatamente como fazem os políticos neopentecostais, opor-se a outras maneiras de viver e de enxergar a vida em vez de pregar a simplicidade, a tolerância e o amor ao próximo. Há, por exemplo, distribuição de terços com pequenos fetos dentro das contas para rezar contra o aborto.

Conteúdo sobre gênero transfóbico no Manual de Bioética distribuído aos participantes da JMJ. Divulgação.
Conteúdo transfóbico sobre gênero no Manual de Bioética distribuído aos participantes da JMJ. Divulgação.

Há várias maneiras de viver o catolicismo. Tenho amigas e amigos católicos que usam o exemplo de Jesus para melhorar o mundo e as pessoas ao seu redor — muitos guiados pela Teologia da Libertação. Essa linha da Igreja propõe que o cristão ou cristã seja também ser político, impõe a justiça social como prática de fé. Tenho grande admiração pela maneira como melhoram a realidade ao seu redor.

Há também as ‘Católicas Pelo Direito de Decidir‘, grupo que possui um catolicismo combativo, feminista, e atual. Existem, na verdade, tantos exemplos de gente ancorada na fé católica para promover o bem, o justo e a solidariedade, que não caberiam neste texto. Com certeza você conhece alguém que transforma sua fé numa pulsão inabalável por um mundo melhor. Pessoas admiráveis vêm em todas as cores, credos, nacionalidades e tamanhos.

Pesquisa encomendada pelas ‘Católicas Pelo Direito de Decidir’ ao Ibope Inteligência revela que:

Se resolvesse permitir o uso da pílula do dia seguinte, a Igreja receberia o apoio total ou parcial de 82% dos católicos jovens e de 75% dos católicos com mais idade. Se decidisse aceitar a união entre pessoas do mesmo sexo seria apoiada por 56% dos jovens católicos e por 43% dos fiéis da mesma religião com mais de 31 anos.

Jovens católicos também revelam apoio (total ou parcial) a mudanças na política interna da Igreja: 90% apóiam a punição de religiosos envolvidos em crimes de pedofilia e corrupção, 72% aprovam o fim do celibato para os padres e 62% a ordenação de mulheres.

Por isso, tenho certeza de que a fé católica não é uma crença monolítica, mas um mosaico de fés e maneiras de vivê-las. E, com tantos exemplos positivos vindos de cristãs e cristãos de todos os lados do globo, é desolador ver que a arquidiocese brasileira optou por um cristianismo do tempo das Cruzadas, que quer destruir o que não lhe agrada, que quer subtrair cidadania àqueles que não compartilham de sua cruz. Um catolicismo que condena mais do que perdoa.

Ser transfeminista não me faz anti-católica ou anti-religiosa. Tenho certeza, por outro lado, de que ser católica ou religiosa não faz de ninguém anti-transfeminista. Por isso, espero que esses 350 mil folhetos não calem a voz desses tantos outros catolicismos, que lembram sempre que Jesus foi crucificado pela intolerância: não foi ele quem crucificou. 

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