“Sorria, Princesa”: palavras que nenhuma mulher que ouvir

Pedir às mulheres que sorriam pode parecer bobagem — até você considerar que isso acontece com frequência quando elas não querem.

Texto de Soraya Chemaly. Tradução de Thayz Athayde com colaboração de Iara Paiva.

Publicado originalmente com o título: “Smile, baby”: The words no woman wants to hear no site Salon.com em 13/09/2013.

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Ontem, eu perdi o trem e fiquei frustrada, com calor e cansada. Um homem que estava na estação decidiu que essa era uma ótima hora para passar a mão dele no meu braço enquanto eu corria e sussurrou: “você ficaria mais bonita se sorrisse”. Vou falar algo sobre “sorria, baby”, a váriável mais pronunciada da mesma opinião. Nenhuma mulher gosta de ouvir isso. E toda mulher se pergunta, ainda que por um instante, o que pode acontecer se ela não sorrir. Eu estava em um lugar lotado e perfeitamente seguro, mas isso era, no final, irrelevante. No passado, já fui seguida por um homem como ele.

Sem exceção, essa frase significa que um homem está totalmente confortável dizendo a uma mulher, que ele provavelmente não conhece, o que deve fazer com o corpo dela para agradá-lo. Isso sugere uma falta de respeito com o corpo de outras pessoas, sua integridade e autonomia. A frase, e outras mais sexualmente explícitas, são expressões verbais dos direitos masculinos. O toque só reforça essa sugestão. Duas palavras inconsequentes. Pouca coisa, até você considerar o assédio na rua como uma normalização do domínio de homens. Homens assediadores são árbitros dos espaços públicos e suas regulações diárias de mulheres nesses lugares resulta que, em 1993, Cynthia Grant Bowman chamou de “segregação informal das mulheres”. Isso não é pouca coisa.

O assédio nas ruas é muito generificado, ligado a violência e esmagadoramente heteronormativo. As mulheres geralmente não assediam homens, agarrando seus corpos ou ameaçando-os em público de qualquer outra forma. Já fui chamada por todos os insultos sexistas que você possa imaginar por não cumprir as exigências sexuais de homens, completamente estranhos, em público. Estou falando de garotos e homens falando obscenidades, fazendo sugestões pornográficas, tocando pessoas que eles não conhecem de uma forma intimidante, à espreita nas entradas de apartamentos, olhando nas calçadas, e seguindo garotas em carros. Quando você vai caminhar e alguém grita que você é “uma vadia” porque não respondeu a um pedido de parar e conversar com ele, isso acaba com seu dia.

De acordo com Holly Kearl, autora de “Always On Guard: Women and Street Harassment“ (“Sempre em alerta: Mulheres e o assédio nas ruas”) e fundadora do site ‘Stop Street Harassment’ (“Chega de Assédio nas ruas”), algo entre 80% e 98% das mulheres entrevistadas reportaram assédio persistente e agressivo nas ruas. Uma variedade de assédio nas ruas é uma constante universal para mulheres, e isso sutilmente transmite o entendimento de que meninas e mulheres não devem se sentir seguras ou confiantes em público. Começa quando as meninas são bem novas, por volta dos nove, e nunca acaba. Mesmo cobrir-se toda não faz nenhum efeito. Quanto mais nova a menina, mais negativos os resultados, os quais estão bem documentados e podem incluir depressão, vergonha, dores de cabeça, ansiedade, distanciamento emocional, medo, auto-objetificação, entre outras coisas. Depois que a fina camada de lisonja desaparece, o que resta é uma consciência quase diária de vulnerabilidade, objetificação sexual e vergonha por ter sido o alvo e não revidar. Algumas mulheres confrontam assediadores, mas a ideia do revide ou de dizer “Pare!” tem implicações de classe e de raça. Como Jamie Nesbitt Golden apontou a pouco tempo: “Apenas dizer ‘não’ para os homens não necessariamente funciona para todo mundo – e pode até ser perigoso”.

Foto de CareyHope via iStock.
Foto de CareyHope via iStock.

Ir para escola, deslocar-se para o trabalho, ou encontrar amigos não deveria envolver avaliar se você está se colocando em uma situação de risco ou não. Num país em que uma em cada cinco mulheres é estuprada (número que pode ser mais alto em alguns grupos, por exemplo se a menina ou a mulher é indígena, está na faculdade, é militar ou tem entre 16 e 24 anos) [nota da tradutora: números referentes aos EUA], nós não podemos nos dar ao luxo de fingir que assédio nas ruas é algo “inofensivo” ou existe no vácuo. Não importa o lugar que o assédio ocorra, ou a sua violência, o assédio nas ruas reflete uma aceitação geral de que o corpo da mulher é um recurso público e que os homens tem direito a ele. Ele deriva de seu poder da ameaça de violência que está latente em cada interação, mesmo as “lisonjeiras”.

Ano passado, em São Francisco, um homem esfaqueou uma mulher no rosto e no braço quando ela não respondeu de forma positiva ao seu assédio sexual na rua. Em Bradenton, Flórida, um homem atirou e matou uma garota que estava no último ano do ensino médio, depois que ela e suas amigas se recusaram a fazer sexo oral nele. Em Chicago, uma garota de 15 anos foi atropelada por um carro depois que ela tentou escapar de assediadores dentro de um ônibus. Apenas procure no Google, “Homem passando a mão em mulher”. O problema com o assédio nas ruas não é a demanda da mulher sorrir ou fazer sexo oral, o problema é responder essa pergunta: “E se a mulher não quiser?”

Em mais de 40.000 respostas enviadas ao site ‘Eveyday Sexism’ (Sexismo Diário), uma porcentagem significativa envolve assédio nas ruas. Algumas postagem típicas são mais ou menos assim: “Um cara veio por trás e colocou a camiseta na minha cabeça e ao mesmo tempo agarrava meus seios, fortemente”, “Assediada por um grupo de garotos de 20 anos de idade… gritando ‘que peitões!”, (para uma garota de 13 anos)” e Uma mão me agarrou por trás e me empurrou entre as pernas. As respostas de meninas e mulheres variam entre serem intimidadas, constrangidas e humilhadas a se enfurecerem e revidarem. A maioria dos homens se mostra surpresa por nós vivermos essa realidade.

Estamos, no entanto, no começo de uma ação global anti-assédio. Organizações como ‘Hollaback! ‘(que encoraja pessoas a compartilharem suas histórias e localizarem os assediadores em mapas de bairro), ‘Stop Street Harassment e o ‘Safe Cities Global Initiative conduzem e compilam pesquisas, trabalham para aumentar a conscientização do público, educam crianças e adultos, dão as pessoas as armas para lidar e confrontar o assédio.

Os testemunhos mais convincentes para a difusão e os efeitos nocivos do assédio, no entanto, vêm de ativistas e artistas. Ano passado, um vídeo sobre assédio nas ruas da Bélgica foi um catalizador importante para a conscientização do público na Europa, quando a cineasta filmou um grupo “normal” de garotos que diziam coisas como “bunda gostosa” e “vadia safada” para mulheres que eles seguiam e com quem falavam. O documentário “Black Woman Walking” (“Mulher Negra Andando”) fez um nítido retrato sobre a face racial do assédio nos Estados Unidos. As gravações do comediante Kamau Bell de conversas com mulheres e assediadores eram muito engraçadas, elucidativas e revelavam muito sobre o que homens pensam quando eles se comportam assim. O mais provocativo, no entanto, talvez seja o trabalho da artista Tatyana Fazlalizadeh. No início desse ano, ela começou a colar grafites de retratos de mulheres acompanhados de textos, como por exemplo: “Meu nome não é gatinha, sexy, princesa, gostosa, delícia, gata, amor” e “Mulheres não estão nas ruas para o seu entretenimento”. Ela acaba de lançar uma iniciativa de financiamento coletivo para expandir seu projeto de arte pública, chamado “Stop Telling Women to Smile” (“Pare de dizer as mulheres para sorrir”), para mais cidades.

A maioria dos homens não são assediadores ofensivos que gritam ameaças vulgares para garotas e mulheres, e o que uma mulher veste, sua idade e seu comportamento tem muito pouco a ver com o assédio. É importante que esses homens desafiem os assediadores. Abusadores tem licença, até recentemente amplamente incontestada, para atuarem autorizados pela nossa cultura. Realmente é uma boa hora para mudar isso.