Eu fui a filha da doméstica que entrou na Universidade

Texto de Xênia Mello.

Eu fui a filha da doméstica que entrou na Universidade. Por muito tempo isso foi motivo de vergonha e angústia. Por muito tempo eu menti sobre o que minha mãe fazia e onde eu morava. Quando me perguntavam eu desconversava, já tinha decorado todo um texto a depender da ocasião: “ela vende roupas, ela traz coisas do Paraguai, ela vende cosméticos”.

Mentir passou a ser uma constante para negar a minha realidade e me afastar da pobreza e negritude. Eu não queria ser fracassada e nessa sociedade você aprende que não ter, não possuir é ser fracassado. Só não é ensinado o que foi tirado e sequestrado de você.

Quando entrei na faculdade ainda não havia política de cotas, o número de pessoas negras e pobres era radicalmente menor. A política de cotas é algo que permite que nos organizemos coletiva e politicamente em espaços de hegemonia branca e classe média, nos permite também enfrentar nossos medos, angústias, superar, receber empatia, fortalecer vínculos.

Fui aprovada em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR), naquela época haviam 4 ou 5 negros num universo de 800 alunos, um carioca militar que havia sido transferido da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os outros eram moçambicanos ou angolanos, frutos de intercâmbios entre as universidades. Todos homens. Por muito tempo eu me senti sozinha. Por muito tempo aquelas colunas majestosas da Faculdade me disseram que eu não pertencia àquele lugar. Estranha, invasora, desconexa, eu queria ser como eles, mas eu não era um deles.

Demorou para que eu compreendesse que meu sofrimento era fruto da desigualdade e não da incapacidade da minha mãe em me garantir uma vida confortável. Por muito tempo eu odiei minha mãe e tive repulsa da pessoa negra e pobre que ela era. Por muito tempo eu odiei minha mãe e tive repulsa da pessoa negra e pobre que ela era. Por muito tempo eu odiei minha mãe e tive repulsa da pessoa negra e pobre que ela era. Eu repito porque muitas foram as vezes em que eu fui violenta, arrogante e me envergonhei da mãe que eu tinha. Isso é o que uma sociedade desigual faz com seus oprimidos, filhos culpabilizarem suas mães por sua pobreza e miséria. Filhos odiarem suas mães por não darem conta ou compreenderem a desigualdade.

Por muito tempo eu tive minha infância e adolescência sequestrada porque minha mãe foi a doméstica que morava no emprego, enquanto ela limpava vossas calcinhas e cuecas, e cuidava de vossos filhos, eu era a criança que ia sozinha pra escola e cuidava do próprio rabo, e sofreu muito por essa solidão e as consequências violentas dessa ausência. Por muito tempo eu não falei sobre esses sentimentos e neguei essa angústia porque não queria que as pessoas tivessem piedade de mim ou me lessem como uma pobre coitada, me rasgava (e ainda me rasga) ver o mal estar ou perceber a solidariedade das pessoas com minha história, pois era a sentença de uma vitimização, um coitadismo (e isso é tudo o que eu não sou).

Ainda é muito difícil lidar com a empatia do outro, a ajuda do outro, porque minhas roupas foram as doadas pelas patroas que minha mãe teve. Ser ajudada e receber empatia ainda carrega a herança de me colocar no meu lugar de preta, pobre e periférica, vestida com as roupas da patroa (tão amáveis né, me doavam aquilo que a moda já tinha cuspido). Isso é apenas uma ilustração, há vários outros exemplos que eu poderia dar. Por muito tempo eu desejei ser filha da mulher bem sucedida, como eram bem sucedidas a maioria das mulheres mães de meu colegas de faculdade: advogadas, desembargadoras, servidoras públicas, psicanalistas, intelectuais. Todas brancas, todas bem vestidas e perfumadas, todas com seu carro, todas com suas viagens.

No meio de tudo isso, essa angústia tomou forma de muitos porres, muitas drogas, muitos escapes, muitas indas e vindas da faculdade. O que era cinco anos, viraram oito, e até hoje não dei conta de retomar a continuidade da pesquisa, me formar já foi bastante custoso emocionalmente. Eu adoro a pesquisa e estudar, mas preciso dar conta dos monstros que habitam em mim. Não era só um curso de Direito, era quem eu não era, era quem eu tinha vergonha de ser. Eu só fui superar isso muito tempo depois, inclusive depois que eu sai da faculdade, depois que eu entrei em contato com pessoas que tiveram repertórios muito parecidos com o meu, mas que em vez da angustia e vergonha, traziam consigo a marca do enfrentamento à desigualdade, do radicalizar, do apontar os privilégios, e sobretudo de uma identidade negra e periférica de resistência.

Aprendi muito com Renato Almeida Freitas Jr. e Mariana Raquel Costa e sou profundamente agradecida. Dois amigos que assim como eu eram filhos de domésticas, pobres, pretos, periféricos que cursaram Direito. Descobri coletivos feministas negros, e conheci várias outras mulheres com vidas com as quais me identifiquei. Percebi que muito de minhas angústias não eram fruto da incapacidade da minha mãe, e sim de uma brutal desigualdade que impõe sofrimentos individuais, e que por marcarem nossa história fica difícil perceber que se trata de uma opressão estrutural.

Vocês, amigos, tem uma importante contribuição para aquilo que me envergonhava se tornasse orgulho, e sobretudo para que eu me permitisse amar e admirar minha mãe da forma preta e pobre como ela é. Eu demorei quase trinta anos pra amar e admirar minha mãe preta e pobre porque ela personifica o que é considerado fracasso numa sociedade desigual: a mulher negra, pobre e periférica que se ocupa do trabalho doméstico.

Minha mãe Rose e meu filho Lourenço. Foto de Xênia Mello.
Minha mãe Rose e meu filho Lourenço. Foto de Xênia Mello.

A desigualdade também sequestra nossa possibilidade de amar. O filme “Que horas ela volta?” retoma esse diálogo para mim, vale ler essa crítica excelente. Enquanto muita gente na sala de cinema teve a oportunidade de observar como é, estar, ser o outro lado, eu revisitei a minha vida, a minha dor, o meu amor, as minhas angústias. Quem sabe se algo assim tivesse sido produzido antes eu tivesse feito escolhas que não me trouxessem tanto sofrimento, ou poderia ter feito as mesmas escolhas, sabendo que poderia ter ser tão “rebelde” quanto a Jéssica, porque em muitos momentos eu me resignei até a porta da cozinha.

A Jéssica é o personagem a representar nosso movimento de resistência e ocupação. Hoje eu sou mãe, e tenho o privilégio de estar presente na vida do meu filho, estar presente ainda é um privilégio. Escrevo isso para também lembrá-lo disso, ter uma mãe presente numa sociedade desigual é um privilégio. Além disso vamos firme na luta. Vai ter favelada, preta, pobre, periférica na Universidade, na política, nas artes, na cidade, em todos os lugares que todas as mulheres negras sejam livres e respeitadas.

Esse texto foi publicado originalmente em meu perfil pessoal do Facebook no dia 04/09/2015.