O feminismo interseccional, esse marginal

Texto de Letícia Howes.

[Atualização: Após a publicação deste post, recebi algumas críticas, que considerei pertinentes: o texto não contextualizou a interseccionalidade e a origem do conceito dentro do feminismo; assim como não abordou o protagonismo das feministas negras na introdução e desenvolvimento do conceito. Apesar de eu ter inserido no texto um link para um post externo que explicava bem essa questão, isso não foi o suficiente para elucidar essa origem. Por isso, ele foi atualizado em 11/12/2013 como tentativa de corrigir, ou pelo menos amenizar, essa falha.

Na lista de discussão e no site, o Blogueiras Feministas está ainda caminhando, tateando, rumo à interseccionalidade. Nesse processo, ainda temos um longo caminho a percorrer. Por isso, também, decidi publicar o texto nesse espaço.]

Aviso: este texto foi escrito do ponto de vista de uma mulher branca, heterossexual, cissexual e de classe média.

Certa vez eu disse, em meu perfil do Facebook, que sou uma das maiores entusiastas do feminismo “pop”, concordando com o texto da Marília Moschkovich: O feminismo está na moda, e agora? Sim, acredito que o feminismo “pop” tem um papel muito importante para trazer pessoas ao movimento, para levar essa bandeira aos quatro cantos, enfim, para propagar os ideais feministas, especialmente entre as meninas, adolescentes e mulheres jovens.

Acho lindo e me emociono ao ver meninas muito jovens compartilhando mensagens feministas pela internet afora, militando, associando-se a coletivos feministas. E, muitas vezes, a forma como essas adolescentes chegam ao feminismo é através da cultura pop e de seus ídolos, ou através de blogs e revistas mais conhecidos do grande público. O que há de errado com isso?

Nada, acredito. Mas, quando a gente já se está há mais tempo na militância, quando se conhece mais a fundo o feminismo, a gente passa a entender que o feminismo de blogs e revistas pode não contemplar toda a problemática do movimento; pode, muitas vezes, até ser excludente.

A gente não pode passar a vida inteira dentro do feminismo sem enxergar isso. Sem enxergar que há um feminismo aí que fala em igualdade de gêneros mas, por vezes, ignora que a igualdade perpassa por muitas instâncias. E que não adianta lutar por igualdade só para mim, ou só para o meu grupo – eu, mulher branca, cis, hétero e de classe média. Porque este não é o mundo que eu quero para mim – um mundo que atenda somente às minhas demandas. Acho – e não estou sozinha – que isso é urgente. É urgente um feminismo que não ignore a realidade e entenda e abrace a militância como algo que vá além dos próprios interesses.

Cena de um protesto em Bangkok, Tailândia. Foto de Wason Wanichakorn/AP Photo.
Cena de um protesto em Bangkok, Tailândia. Foto de Wason Wanichakorn/AP Photo.

Se feminismo é sobre igualdade, não podemos falar sobre igualdade sem falar nos grupos historicamente oprimidos. Também pelo fato de que as mulheres, dentro desses grupos, estão quase sempre em uma posição ainda mais desigual e vulnerável – lembrando que as opressões se inter-relacionam, não se excluem.

É muito importante falar de misoginia, sim, essa violência que atinge e mata mulheres de todas as classes, mas também é importante não ignorar a violência que segrega e mata diariamente as pessoas trans, a violência que repudia e espanca as pessoas homossexuais, a violência que castiga e extermina as populações negra e indígena. Fora outros tipos de opressões sociais que perpassam nossa sociedade e excluem pessoas com deficiência ou que não se encaixam nos padrões físicos ou comportamentais.

E, é claro, o feminismo não pode esquecer as mulheres que lutam pelo direito a um parto digno, sem violência; as que lutam para não serem invisibilizadas pela maternidade; as que lutam para que a sociedade não despeje sobre as mães toda a responsabilidade pelo cuidado das crianças.

E por que falo sobre isso? Não sou mãe, e mesmo não sendo, acredito que essa luta também é minha, assim como todas as outras citadas. Porque dá para fazer tudo isso dentro do feminismo, sabe? Porque é possível abraçar uma luta sem abrir mão de outra. Ninguém nunca disse que elas são excludentes.

“Toda luta contra opressão é uma causa feminista”.

Então, assim como defendo e apoio o feminismo “pop”, também estou do lado desse feminismo mais “marginal” – o feminismo interseccional. Marginal porque olha para aqueles grupos que ninguém quer olhar, porque causa incômodo, porque nos faz sair da nossa zona de conforto, porque nos coloca cara a cara com nossos privilégios.

[O feminismo interseccional originou-se da militância das feministas negras estadunidenses, que desde o final da década de 1960 introduziram o conceito, disputando espaço dentro de um feminismo predominantemente branco. A teoria sociológica sobre a interseccionalidade foi apresentada pela primeira vez pela teórica feminista Kimberlé Crenshaw, em 1989.

Essas mulheres levantaram esta questão crucial: de que o feminismo branco não atendia às suas demandas porque ignorava justamente o viés de raça – a opressão racial se soma, se inter-relaciona, com a opressão de gênero; não é possível tratar as duas coisas isoladamente – daí o termo “feminismo interseccional”. Com o tempo, isso passou a englobar outros eixos de opressão – como o de classe social, o relacionado à transgeneridade, entre outros. O conceito não foi, portanto, desenvolvido por feministas brancas, mas pelas negras, a quem devemos o legado sobre esse tema.]

Então, quando a gente aponta isso, o esquecimento da interseccionalidade, não é simplesmente para fazer crítica, porque nós adoramos criticar as “colegas”, não é por perseguição; é porque nós acreditamos que não dá mais para fazer esse feminismo baseado no umbiguismo, no “se está bom pra mim, é o que basta”.

O meu feminismo será interseccional, ou não será.

Saiba mais:

+ Sobre transexualidade, feminismo interseccional e sororidade

+ Não existe hierarquia de opressão

+ Intersectionality (em inglês)