Texto de Leticia Alves.
Ramona
Depois que ele se foi, Ramona começou a notar que estava esperando um filho. Não… Outro não dá mais! Com os olhos turvos, olhava na vizinhança um grande anúncio que dizia: “O aborto é crime!” Minha Nossa Senhora, me ajuda a pensar! Me perdoa, minha mãe! Mas tenho que abortar.
Soube de um lugar no centro da cidade onde senhoras ricas dizem que vão se curar. Com o dinheiro que ganha não pôde solucionar. O que o doutor lhe pediu jamais poderá juntar. Teve uma consulta barata, remédio animal e com uma forte dor começou a sangrar.
Aos poucos, foi desmaiando, confusa e envergonhada. Gritou enquanto morria: “Por deus! Não sou criminosa!” A Ramona lhe enterraram os vizinhos e a caridade. Seu esposo não soube nada e seus filhos na orfandade. E assim terminou uma vida, como essa há tantas mais. Assim morrem as pobres e eu pergunto a vocês: A quem devemos julgar?
Canção de Amparo Ochoa (tradução própria).
Há pouco tempo, comecei a curtir algumas crônicas e textos de um grupo de mulheres na Argentina, as Socorristas en Red (feministas que abortamos), que decidiram comunicar e expressar, através da escrita, as experiências próprias e das mulheres que elas acompanham em situação de abortamento. Além dos manifestos e investigações feministas, que são extremamente importantes, me pareceu incrível pensar outras linguagens para tratar o aborto e aproximá-lo mais das pessoas .
Abordar o aborto enquanto experiência das mulheres, portanto, também pode se dar através da narrativa, da poesia, da crônica e, por que não, da música, como é o caso da canção no início do texto.

Os pedacinhos de crônica que aborto aqui são algumas dessas tentativas baseadas em histórias de mulheres que abortaram no Brasil e no México.
- Setembro/2014 – Rio de Janeiro, Brasil.
Elizângela, 32 anos, vivia em São Gonçalo, município do Rio de Janeiro, Brasil. Queria muito ser contratada em seu trabalho e alcançar sua autonomia econômica. Quando descobre que está grávida, toma a decisão de abortar. Seu companheiro, Anderson, tenta lhe convencer do contrário — era contra o aborto e acreditava ser possível sustentar uma quarta filha ou filho.
Mas, Elizângela sabia o que era melhor para ela mesma, apesar de viver em um país e em uma sociedade que não lhe respeitou como sujeita de decisões. Ainda assim, Elizângela igual a milhões de mulheres, enfrentou o risco de contatar um serviço clandestino de aborto. Anderson, então, a acompanhou até o ponto de encontro acordado com o serviço. Elizângela levou consigo 2.800 reais. Nesse lugar, um homem a esperava em uma kombi.
Ninguém jamais vai saber o que sentiu e viveu Elizângela desde que ela entrou no carro até a sua morte, na emergência de um hospital. As investigações do caso foram próprias de uma instituição em um país onde as mulheres que buscam exercer o seu direito de decidir, previsto em acordos internacionais assinados pelo Brasil, são consideradas criminosas. Seu caso chegou aos meios de comunicação. As histórias e opiniões construídas pelos meios, assim como a opinião pública, acusaram-na de assassina, imprudente. Elizângela, guerreira na luta pelo aborto livre e seguro: PRESENTE!
- Outubro/2014 – Cidade do México, México.
Alejandra tem 26 anos e vive em Iztapalapa, Distrito Federal, México. Há algumas semanas, descobriu que está grávida. Nesse momento, ela não quer ter um filho de jeito algum e ainda não sabe se algum dia irá querê-lo. Depois de conversar com uma amiga sobre o assunto e as alternativas que teria para seguir adiante com a sua decisão, as duas foram juntas a uma das clínicas de atenção especializada à saúde da mulher.
Já faz meia hora que Alejandra espera na sala da clínica. Enquanto isso, ela lembra que se esqueceu de pôr na máquina de lavar o uniforme da loja onde trabalha. Hoje, dia do procedimento, Alejandra teve que pedir folga no trabalho com a desculpa de que acompanharia sua tia a uma consulta médica. Apesar da certeza que Ale tem sobre o que está fazendo, ela tem medo que em seu trabalho descubram sobre o aborto, que a julguem e a demitam. Liga rapidamente para a mãe a quem pede o favor de ajudá-la com o uniforme.
A mãe atende o pedido e lhe pergunta como estão as coisas na clínica. Ale diz que está ansiosa, mas que tudo vai bem e que ela e Mixcoatl, seu companheiro, estão esperando a doutora com o resultado dos exames para, então, ser atendida.
+ Sobre o assunto: Aproximações na luta pelo aborto livre, seguro e legal no México e Brasil.
Autora
Sou Leticia. Participo do Coletivo Feminista Luiza Mahin do Rio de Janeiro. Durante o ano passado, colaborei em um Fundo de Aborto e Justiça Social e em sua linha telefônica de informação a mulheres em processo de aborto, na Cidade do México. De volta, agora pretendo trabalhar mais com a difusão de informações sobre aborto.