Literatura infantil não-reciclável

Texto de Danielle Cony.

O fato de um livro ser um livro não se posiciona como verdade absoluta. Assim como em qualquer outro meio, é necessário tomar um certo cuidado com o discurso do autor. O fato de ser literatura não o isenta de preconceitos. Vamos falar sobre literatura infantil. Eis que minha filha, de quatro anos, chega em casa com um exemplar da ‘Bela e a Fera‘, retirado da Biblioteca da Escola.

Cena do filme ‘A Bela e a Fera’ (1991)

Normalmente, evito a todo custo histórias, filmes e literatura onde o reforço de gênero é a principal vertente do discurso. Mas, tinha sido a minha filha que havia escolhido a história e não achei produtivo censurá-la. Li para ela, sem entusiamo.

Na verdade, após ler a história fiquei chocada. Bela sofre de síndrome de Estocolmo. Para quem não sabe o que é essa síndrome, é basicamente uma aproximação e empatia pelo sequestrador. A síndrome é sofrida por pessoas que são sequestradas. E, é exatamente disso que o conto fala. De um homem que não tem bom coração (pois é enfeitiçado como fera, por não ter compaixão) que sequestra o pai de Bela. Na tentativa de salvar o pai, Bela se disponibiliza a ficar no lugar dele, já que este é um senhor de idade. Bela sofre abusos impostos em seu cárcere. Precisa agir, vestir-se de acordo com as vontades da Fera. Até que um dia, os moradores do vilarejo vão tentar resgatá-la e ela faz o quê? Protege a FERA. Protege o agressor, o sequestrador! Gente, isso é Síndrome de Estocolmo!

Fechei o livro em estado de choque. Conhecia a história, mas fui aprender sobre essa síndrome recentemente, depois que tive mais contato com o movimento feminista. Então, quando reli, meu olhar estava mudado, me senti muito desconfortável nessa situação. De todas as princesas da Disney, Bela é quem tem a pior história de horror. Não é ver “a beleza através da feiúra” que o conto mostra. É se apaixonar pelo seu agressor. É incitar a aceitação da agressividade masculina, enxergando assim a “beleza interna” do agressor. É ser submissa ao mundo aceitando-o do jeito que é. É incentivar o comportamento passivo causado por um cárcere, sem indignação, sem reflexões e ainda por cima incentivando o imaginário feminino através de uma figura violenta como a Fera.

Já imaginou se Bela se apaixonasse por outra pessoa e pedisse o divórcio? O que seu “príncipe” iria fazer? Vemos histórias como essa na vida real todos os dias. O caso Eloá e o site ‘Machismo Mata‘ exibem o que esse machismo e a violência faz com as mulheres. E, como eu, uma feminista, vou ler para minha filha essa história, esse mito, de forma que ela entenda que esse comportamento não é legal? A Fera é um sequestrador e deveria ser punido por isso. Simples assim.

Agora, imagine se Bela fosse uma criança. E a Fera seu sequestrador. A história não fica mais bonita assim? Refletiu? Acredito que você tenha ficado com medo também, não? Então mulheres, rasguem seus livros e queimem os dvd’s da Bela e a Fera. Sem opção de reciclagem! Essa história não tem nada de inocente.

Depois de refletir e sair do estado de choque pós-leitura, disse para minha filha que se uma pessoa que ela não conhece a tratasse mal e a colocasse de castigo que ela não iria gostar da pessoa, mesmo que esse fosse um príncipe encantado. Desmistifiquei a história ali mesmo. Ao final, perguntei se ela gostou da história. Ela me disse que não. Depois foi brincar de massinha, para meu alívio.

A mídia, a literatura, os filmes nos ajudam a perpetuar os estereótipos, clichês e o machismo ao nossos filhos. Cabe a nós termos um olho clínico e crítico quanto a esses mitos. Dissecá-los um a um, questionando-os e entendendo seu real sentido. Só assim poderemos ajudar nossas filhas e filhos a adquirir uma consciência sobre o mundo que nos cerca, para que esses esteriótipos, violências e preconceitos não seja repetidos e disceminados.