Quem adaptou o romance Os homens que não amavam as mulheres teve um trabalho gigantesco: transpor uma obra fantástica, de alto impacto, um sucesso estrondoso, para as telas. De catatau de mais de 500 páginas para filme de quase três horas. David Fincher, o diretor, também suou. O resultado valeu a pena, embora não tenha sido expresso em muitas indicações para prêmios, sobretudo para o Oscar (em que a maior parte das indicações do filme foi para prêmios técnicos).

O filme acompanha o jornalista sueco Mikael Blomkvist, recém-condenado por difamação de um empresário bastante suspeito, em uma investigação a respeito do sumiço de uma mocinha que ocorreu há 40 anos. Quem o contrata é o tio-avô da moça, angustiado com o desaparecimento da sobrinha favorita. A história dele se cruza com a da hacker Lisbeth Salander, considerada pelo Estado uma sociopata que necessita urgentemente de tutela desde a adolescência.
Aviso: spoilers a partir daqui
A produção se esmerou em trazer para a tela a sensação de frio e isolamento físico/psicológico dos protagonistas, que se movimentam entre um grupo pequeno de pessoas. Mikael e principalmente Lisbeth estão praticamente sozinhos – lembro mais uma vez que estou falando do filme, certo? As cores na tela se tornam mais quentes quando se trata de algumas lembranças de Henrik Vanger, o velho industrial que quer saber o que houve com a sobrinha Harriett. As cores empalidecem quando as cenas do passado deixam de ser as lembranças de Vanger e passam a ser a reconstituição de cenas do dia do desaparecimento por meio das fotos. Nas poucas vezes em que aparece Erika, a amante e sócia de Mikael, e em que a ação se desenvolve na redação da revista Millenium, também voltam à tela os tons um pouco mais quentes.
A caracterização dos personagens também está excelente. O IMDB informa que houve um certo movimento para que a atriz Noomi Rapace, que interpretou Lisbeth na versão sueca, também o fizesse na versão norteamericana. Rooney Mara criou uma Lisbeth até agora na medida certa: andrógina, introspectiva, forte, inteligente. Andando de cabeça baixa e ombros encolhidos ela quer ficar invisível e quer estar pronta para se defender porque o mundo é cretino com ela.
Estranhei alguns comentários que atribuem a Lisbeth uma fragilidade que a meu ver não existe; alguns mencionaram a cena no chuveiro. Eu compreenderia se a visse encolhida debaixo d’água, chorando, mas ela está de pé, a duras penas, e só no final da cena se abaixa. Ela sente dor, mas não chora. Em uma das cenas seguintes ela aparece se tatuando e perguntando ao tatuador o preço de uma máquina como aquela. Pra mim é uma forma inteligente – e que respeita a inteligência do espectador – de mostrar que Lisbeth tem marcas mas não se abate e planeja uma reação.

Também é importante lembrar que ela procura seu tutor planejando gravar o abuso que sabe que vai sofrer (e sabemos disso quando a câmera focaliza a bolsa que ela posiciona cuidadosamente virada para a cama), ainda que não imagine qual será a extensão da violência. Isso não é fragilidade e não é comportamento de pessoa acuada. Ah, no final ela desiste de levar um presente a Mikael quando o vê saindo com Erika no Natal? Mas quem conhece a trilogia sabe que pra ela a grande questão não é a decepção com Mikael, mas consigo mesma, por ter baixado a guarda. E ela segue em frente afinal, dá partida na moto e se manda (vocês vão me perdoar a empolgação, Lisbeth Salander pra mim é uma das mulheres mais incríveis da literatura e sua história é uma das coisas mais impressionantes que já li).
Mikael também foi bem personificado por Daniel Craig. Tenho reservas quanto ao James Bond que ele criou e consegui me esquecer disso, o que foi muito bom. Óbvio que o filme não tem como relatar toda a vida amorosa de Mikael, que é definitivamente um homem que ama as mulheres e é amado por elas; essa parte foi suprimida neste filme (veremos como a coisa vai se desenvolver nos próximos). Então temos nas telas um Super-Blomkvist mais contido em seus amores mas nem um pouco desprovido de suas qualidades: ousadia, coragem, inteligência, charme, embora não seja sequer um sujeito bonito-padrão, distribuindo sorrisos-colgate às moças que cruzam seu caminho.
Existe uma discussão a respeito da presença de misoginia na filmografia de David Fincher e no seu último filme em especial. Achei sinceramente um exagero. Em primeiro lugar, como um sujeito vai adaptar uma trilogia que denuncia violência contra a mulher e transformá-la em material misógino? A violência crua e muito gráfica (a já famosa cena de estupro é desesperadora) não é apologética sob qualquer aspecto; se chega a ter qualquer componente sensual provavelmente é justamente para dar ao espectador uma sensação de perturbação maior ainda.
David Fincher é um diretor de imagens fortes, e quem assistiu Se7en sabe disso, quem se lembra da cena final de Clube da Luta também. As mulheres nos filmes de David Fincher sofrem, sofrem muito, de todas as formas possíveis, mas quem tem coragem de dizer que a Ripley de Sigourney Weaver é uma vítima?
Em O Curioso Caso de Benjamin Button, Cate Blanchett é não só a narradora da história do sujeito que vive “de trás pra frente”, mas ela é o esteio dele, quem o acompanha incondicionalmente até o final (no princípio de tudo existe outra mulher, sua formidável mãe adotiva). Ela sofre? Sofre, ô, que tristeza. A cena do final da vida de Benjamin me deixou aterrorizada pra sempre e pretendo nunca mais ver o filme, choro até hoje lembrando. Mas aquela mulher é a imagem do amor, que pode também ser sofrido, não? Ela sofreu mas viveu aquela história intensamente, escolheu aquilo e certamente morreu feliz com sua escolha.
Mesmo em A Rede Social, que detestei, não consegui ver algo de propriamente elogioso a respeito dos gênios empreendedores que tratam mulheres como meros buracos – aqueles caras, para mim, não são heróis, são babacas que em função de uma série de circunstâncias se tornaram sujeitos poderosos e admiráveis nesse sentido, mas continuaram sendo douchebags. Em Zodíaco, a personagem de Chloë Sevigny faz o que uma mulher queixo duro faria: vai embora quando seu marido se torna um sujeito meio louco investigando o serial killer que dá nome ao filme. Acho impressionante também que quem enxergue misoginia na obra de Fincher não reflita a respeito da própria escalação de atrizes para os papeis femininos.
Li também alguns comentários a respeito da sexualização de Lisbeth Salander. Como não apresentar Lisbeth, uma mulher que vive sua sexualidade plenamente, de outra forma? Limar, talvez, o sexo dos filmes todos? Ou torna-la assexuada em contraposição ao intenso movimento que se verifica na cama de Mikael? Estamos falando também de um filme hollywoodiano e não é de se espantar que venda sexo, então por que a gritaria afinal? Alguém acha que o estúdio permitiria o lançamento de um blockbuster assexuado, baseado nos livros da trilogia? Que exagero. Pra mim os filmes de David Fincher passam mais a ideia de “ô porcaria de mundo doido…” do que de “mulher tem que se ferrar mesmo”.
Aguardamos com ansiedade as filmagem e os lançamentos dos outros dois filmes, então. Já sinto saudade de Lisbeth e Mikael.