Direitos Humanos – afinal, para quem?

Este post surgiu de um debate na lista das Blogueiras Feministas, e foi bem interessante. Assim, me vi compelida a escrever um post falando sobre essa noção que as vezes é confusa, diante do tratamento que muitos agentes políticos e a própria imprensa dão ao tema dos Direitos Humanos.

Infratores, vítimas e Direitos Humanos

Em muitas situações, acontece o equívoco (infelizmente bem comum), de acreditarmos que os criminosos cometem violações de direitos humanos e que  as vítimas de criminosos merecem, de per si, o amparo das disposições dos Direitos Humenos.

Os Direitos Humanos existem para proteger o indivíduo das ações do Estado, e não dos atos de outros indivíduos. Explico: Quando um policial comente um crime de tortura, ele, policial, ser humano, pratica um crime de tortura. E o Estado, quando não atua de forma a deixar claro que tal tratamento (tortura) não é  aceitável,  comete violação de Direitos Humanos. Ele, Estado, tem a custódia de um ser humano e não pode violar a sua dignidade e sua  integridade física. O criminoso é responsabilizado pessoalmente, a responsabilidade penal é pessoal e intransferível. O Estado é um ente fictício, jurídico, não tem como agir com suas mãos fictas. Ele (nós, cidadãos), delegamos tarefas aos agentes públicos. E  esses agentes tem que agir de acordo com os ditames dos valores e  princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito.

Então, vamos lá, o Estado comete violações de Direitos Humanos quanto às vítimas quando não as atende adequadamente. Triste, repugnante, verdade. Acontece. Todos os dias inúmeras pessoas, tanto de movimentos sociais quanto nas instituições do Estado, lutam para diminuir os casos de “humanos direitos”.

Complexo Penitenciário do Carandiru. A antiga "Casa de Detenção" foi desativada, alguns anos depois do massacre de 1992. Imagem: CMI Brasil

Quem viola os Direitos humanos é o Estado, através de seus agentes. E aí, ocorrem incontáveis violações, aplicadas especialmente aos cidadãos que cometeram crimes, ou que são suspeitos de haverem cometido crimes. Em favelas e áreas mais pobres, com a população composta por pessoas que são diariamente confundidas com “bandidos”, as polícias assumem um papel de “caçadores de bandido”, atitude que é celebrada irrefletidamente em todos os grandes portais de notícias, pelos comentaristas, especialmente anônimos. Dia 23 de novembro, foi noticiado que o novo comandante da ROTA/PM de São Paulo é um dos oficiais que participou da invasão ao presídio do Carandiru, em 1992. Operação que resultou no massacre de pelo menos 111 presos. E muitas pessoas acreditam que o perfil (que pode nem ser esse, não sei “quem é a pessoa” do comandante) de alguém que participou de uma das maiores chacinas da história é o melhor possível para comandar a unidade Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. Se pensarmos que a ROTA tem uma das mais altas taxas de letalidade, e que até hoje tem em seu portal de internet celebrações à “revolução de 31 de março de 1964, bem, fica explicado…

Voltando ao tema: saúde e educação de qualidade. Transporte público e saneamento básico. Segurança. Direitos trabalhistas. Meio ambiente protegido. Bioética. Todos esses direitos, são direitos humanos. De segunda e terceira geração. Mais sobre Direitos Humanos e sua evolução na história, no site DHnet.org.br.

Muitas vezes, ouvimos as pessoas dizerem que Direitos Humanos são uma ilusão, que é bonito no papel, mas que na realidade, “não funciona”. Respondo: o Direito não deve se pautar pelo que É. Sim pelo que DEVE SER. O Direito é uma ciência deontológica, um estudo do dever-ser. A norma, a lei, é o dever-ser. É algo pelo que devemos aspirar alcançar. Se a gente se pautar pelo que é, pelo que está posto, simplesmente, sem questionamentos ou críticas, sem debate qualificado, não iríamos evoluir. Estaríamos nas cavernas até hoje, na época da vingança, da justiça privada.

A luta pelos Direitos humanos é uma luta essencial para a implantação de uma sociedade igualitária de fato. Não podemos nos deixar levar por uma ânsia (até legítima, entendo, no sentido de que é uma decorrência de se colocar no lugar da vítima) de retaliação e categorização de pessoas. Algumas pessoas são (somos?) melhores que outros?

Relativização de Direitos

Nos debates sobre Direitos Humanos é comum presenciar uma discussão onde há uma “relativização de direitos”, no sentido de que alguns direitos devem valer para algumas pessoas, e não para outras. Em inúmeros casos, o próprio Direito, a lei ou as políticas públicas criam situações de proteção. Porém, nessas hipóteses, o fundamento é fazer o DIREITO chegar aos indivíduos que durante décadas, até séculos, foram negligenciados. Considerados OBJETO, propriedade, e não SUJEITOS, capazes de exercerem DIREITOS – vide a situação das mulheres e dos negros (e negras, duplamente negligenciadas e oprimidas). Nessas situações especiais, o Direito atual pode colocar as minorias vulneráveis em situação de igualdade, ao menos jurídica.

O maior dilema dos policiais é entre a “lei” e a “ordem”, ou seja, entre o dilema de manter a “ordem” (e aqui cabe a questão: a ordem de quem? Qual seria a NOSSA posição nessa ordem instituída?  As conquistas femininas são recentes, fruto quase da segunda geração  de Direitos Humanos –  voto, propriedade, divórcio, não precisar de autorização jurídica do marido/pai/irmão para trabalhar e estudar, entre tantas outras) e a legalidade. Seria muito fácil manter a ordem  se pudéssemos ignorar a lei. Mas uma sociedade que abre mão da legalidade em nome da ordem, de uma falsa sensação de segurança, não merece nenhuma das duas.

Os direitos humanos são direitos do cidadão face ao Estado. Então, significa que um(a) estuprador(a), um(a) homicida, um(a)
motorista embriagad(o) e uma mulher que aborta (para falar de uma conduta que, atualmente é crime, e que nós, Blogueiras Feministas, lutamos pela descriminalização ) sim, tem os mesmos direitos, face ao Estado. Direito à defesa, direito à  integridade física preservada (proibição de tortura, tratamento cruel ou degradante), direito ao devido processo legal, entre outros tantos.  Então, o tratamento deve ser  justo e igual para todos, de acordo com o seu papel no crime.

Só que a pessoa que pratica o crime está sujeita à ação direta do Estado (polícia, promotor, juiz, prisão) enquanto a vítima, foi alvo dos ataques do agressor mas, face  ao Estado, ela sofre menos interferência, ela não é alvo da punição estatal. Logo, em princípio (já vou falar das exceções) ela não tem  (não teria) necessidade do amparo dos Direitos Humanos.

Agora a exceção: claro que o Estado se omite quanto às vítimas, e aí comete violações de Direitos Humanos, quando não fornece o tratamento adequado. Quando, por exemplo, uma mulher é vitima de estupro e não recebe um tratamento digno na delegacia, no processo, quando tem que ir na justiça para conseguir autorização para abortar o fruto do estupro, quando é culpabilizada pela agressão que sofreu… Quando, por exemplo, uma vítima de violência doméstica acaba tendo que voltar para o agressor, porque ela tem filhos, e não existe, na cidade, um abrigo específico para vítimas e crianças, e ela fica em um abrigo comum, misto, sem segurança… A lei Maria da Penha prevê o atendimento multidisciplinar e o encaminhamento para órgãos de assistência social, para acompanhamento e auxílio. Nem sempre isso acontece (quase nunca isso acontece).

Mas, nesses casos, quem viola os Direitos Humanos das vítimas é o Estado, com a sua omissão, e não o agressor. O agressor praticou um crime, e será (deveria ser) punido.

Políticas públicas: PRONASCI e CONSEG

No dia 22 de novembro, estivemos em Brasília, na Câmara dos Deputados, eu, Camilla Magalhães e Cynthia Semíramis, a convite da Priscilla Carol, e de dirigentes do CFEMEA e INESC, para participar da audiência pública da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.

Nessa audiência foram apresentados dados estarrecedores – mesmo que não sejam novidade, infelizmente – sobre a violência no Brasil. E foi solicitado aos senhores deputados que propusessem emendas ao Plano Plurianual, exercícios 2012-2015, e à Lei Orçamentária Anual (já prestes a ser colocada em votação), para garantir a dotação de recursos orçamentários para os programas de promoção de Direitos Humanos e proteção às minorias vulneráveis, recursos estes que foram reduzidos para os próximos anos, na ordem de até 40%.

Como muito bem disse a Priscilla, no texto “O governo da primeira presidenta não é um governo para as mulheres!”:

porque para que o país se desenvolva de forma efetiva, o Estado precisa garantir que avancemos na redução das desigualdades e garanta os direitos básicos para todxs xs cidadãxs. Dar atenção especial àqueles que frequentemente são excluídas na sociedade não é um reforço da descriminação e sim uma forma de garantir que seja possível convivermos com mais igualdade, apesar das nossas diferenças. E é importante acompanharmos e reivindicarmos nossos direitosm através dos mecanismos democráticos que temos.

Em junho, também escrevi ssbre meu desconforto com os rumos do atual cenário político.

O simples desenvolvimento econômico não é suficiente para criar cidadãos. Tem sido criados consumidores, replicadores dos valores de uma classe dominante que por séculos tem promovido o massacre invisível de indígenas, negros, mulheres.

A redução ou possível extinção do PRONASCI – Programa Nacional de Segurança com Cidadania  é um retrocesso sem tamanho para a segurança pública no Brasil. É necessária e urgente a avaliação do PRONASCI. Avaliar os avanços e alterar os pontos onde o programa estagnou.

O PRONASCI tem como um dos objetivos investir na qualificação dos agentes de segurança pública em Direitos Humanos e na qualificação em geral. Para isso, paga inclusive uma “bolsa-formação”, para os agentes que participarem de cursos promovidos pela SENASP, à distância, e cujos salários sejam inferiores a um determinado valor. A SENASP, através do PRONASCI, investiu milhões para promover cursos de formação em Direitos Humanos, além de haver inserido nas grades dos cursos de formação policiais, gerais, disciplinas de direitos humanos, diversidade, armas não letais, etc.

Deixar de investir VERBAS no combate ao racismo institucional é promover, por vias indiretas, a continuidade do genocídio de jovens negros pobres no país.

Em números absolutos, o Brasil é o país com maior número de homicídios, são quase 50.000 por ano. Em taxas por cem mil habitantes, em uma única cidade, Rio de Janeiro, tem-se taxas de 12 a 100, dependendo da região. Quando se colocam indicadores como a cor/raça, o número é ainda mais absurdo: entre brancos, 25 mortes por cem mil habitantes. Entre negros, chega a 300 mortes por cem mil habitantes.

A face da pobreza e alvo do genocídio. Foto de Foto: Lúcio Távora/Ag. A Tarde/AE.

Isso não é uma taxa de homicídio, é um massacre étnico, um crime contra a humanidade, perpetrado, também, pelo Estado, já que a taxa de letalidade policial é consideravelmente mais alta em locais onde a concentração da população por renda e cor está entre os de mais baixa renda e mais escura cor…

Uma das boas notícias é a proposta de realização da 2ª CONSEG – Conferência Nacional de Segurança Pùblica. Sei que há leitores e participantes do blog que são militantes em diversas áreas – saúde, politicas  públicas para mulheres, igualdade racial, meio ambiente, etc. – e várias dessas áreas já foram contempladas com Conferências Nacionais, onde houve debate e deliberação, participação popular essencial para a formação do espaço público necessário para a consolidação da democracia.  A segurança pública em geral fica restrita aos “especialistas”, não há participação social, salvo quando convocada pelas polícias e órgãos estatais (alguém aí conhece algum CONSEP ou CONSEG local?).

Algumas das proposições da 1ª CONSEG tem sido implementadas e já vejo  algumas mudanças no panorama da segurança pública (claro que falo como  alguém que está DENTRO, do lado do opressor, se assim quiserem, não posso deixar de ressaltar). Mas, por isso mesmo, vejo que é ESSENCIAL a  participação efetiva da sociedade civil. A (falsa) dicotomia entre “direitos humanos” e “segurança pública” contribuiu para aumentar o abismo entre os movimentos sociais e a segurança pública, e prejudicar a efetivação de debate e construção de um espaço público, da democracia real.

A Camilla Magalhães deu uma entrevista para a Cecíllia Oliveira, do Observatório de Favelas, que explicou bem a nossa sensação quanto ao debate da audiência pública, e publicou hoje o texto ‘Segurança pública, direitos humanos e a opção pela repressão’ que merece muito ser lido.