Sobre putas e palavras mágicas

Texto de Laura Schichvarger

Quer ver como mágica existe? Vou te provar.

Pensa naquele desgraçado que te fechou no trânsito. Ou naquela vizinha insuportável. Enfim, qualquer pessoa que te irrita. Agora pensa como é gostoso xingá-la, mesmo que a pessoa não ouça.

Que alívio após chamar aquela pessoa de: “Sua vaca”, “Seu cuzão”, “Vai tomar no seu cu, filho da puta”. Uau, já me sinto mais leve. Xingar é que nem ir ao banheiro depois do almoço. É uma função excretora verbal. Acredito mesmo que, quando a vontade se faz, é melhor xingar ao léu do que enfezar-se (embora muitos sofram de prisão de ventre verbal).

Parece normal que quase todos os palavrões em português refiram-se a atividades ligadas ao sexo (o que inclui “viado”, “corno” e partes do corpo: “caralho”, “boceta”) ou a funções corporais (“merda”, “porra”, “cagar”, etc). E tudo o que parece normal é invisível (calma, você já vai ver onde quero chegar).

Foto de Ana C. Nemes no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Foto de Ana C. Nemes no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Por que não sentimos tamanho alívio gritando, por exemplo, “berinjela” ou, sei lá, “catapora”? Oras, porque tudo bem uma berinjela. Olha que lustrosa, que cor profunda, que suculência. Mas um caralho? Uma boceta? E veja bem, é caralho, não pênis, que pertence ao contexto médico e suas luvas de látex. Pênis cheira a desinfetante. Ou alguém grita “pênis!!!” quando prende o dedo na porta?

Os caralhos e as bocetas estão por aí, entre as pernas de cada pessoa que você cruza na rua, mas estão todos bem escondidos sob camadas de pano. Exibir o caralho ou a boceta em público é crime de atentado ao pudor. Xingar também é crime, mas se você não tiver status de autoridade dificilmente conseguirá punir alguém que te xingou pelas vias da lei.

E, falando em lei, podemos estabelecer uma já: quanto mais proibida é a coisa a ser nomeada, mais nomes ela tem. Os órgãos sexuais, a cachaça e o diabo que o digam, campeões do subterfúgio. O exemplo do diabo é bastante elucidativo: proferir o seu nome era chamá-lo. O nome é a chave que abre os portais infernais.

A mágica também funciona assim: basta uma palavra (e não qualquer uma — é preciso saber a palavra mágica) e uma coisa se transforma em outra. E se você acha que mágica não existe, o que faz o juiz (ou o padre) ao declarar dois seres “marido e mulher”? Ou o policial ao dar “voz de prisão”? Ou você ao seu chefe, ao dizer “me demito”? Mágica existe. E ela é feita de palavras que são, em si, ações.

Agora que provei que mágica existe, vou explicar porque comecei a falar disso.

Tudo bem certos xingamentos entre adultos, assim como tudo bem em balançar o balangandã pelado entre as quatro paredes do lar. Entre amigos, xingar é quase um atestado de intimidade: “ô seu viado, quando a gente vai beber aquela cerveja?”. Mesmo as palavras ditas durante o sexo (assunto que merece per se um texto inteiro) é um caminhar na navalha entre o fofinho e a excrescência. Em suma, o falar sacana consiste geralmente em descrições do ato realizado no momento ou a ser realizado em breve. Como a arte se mostra bem cabeluda na prática (depilação é para os fracos), uma técnica bastante utilizada consiste no recurso dos palavrões atenuados por um diminutivo: “vira essa bocetinha pra cá”, “me dá esse cuzinho”.

Mas, mesmo a intimidade tem seus limites. Em um episódio do seriado americano Sex and the City, a personagem Charlotte, a mais certinha das quatro protagonistas, começa a sair com um cara lindo, simpático, fofo, etc… mas que só conseguia gozar se gritasse “SUA PUTA”, o que a deixava bem intrigada.

Isso porque, ao chamar uma mulher de “puta”, especialmente na hora do sexo, cruza-se uma fronteira: é como se dissesse “sua função aqui é me satisfazer, o seu desejo não me interessa”. Sim, com uma só palavra é possível transformar uma relação de igual para igual em uma relação de poder. Mas isso tudo só acontece porque a palavra “puta”, em português, é também um xingamento. O efeito não seria o mesmo se o namorado da Charlotte gritasse “mulher da vida!”. Na palavra “puta” existe o proibido, e com ele o desejo reprimido (nada é proibido por acaso). Aquele que grita “puta” para gozar é como aquele que grita “socorro” enquanto se afoga — tem medo de se perder, despossuído pelas vias do próprio desejo.

Gabriela Leite. Foto: divulgação.
Gabriela Leite. Foto: divulgação.

É por isso que meu olho brilhou quando vi aquela senhora empunhar o microfone em uma palestra e dizer algo mais ou menos assim: “há muitos nomes para a nossa profissão. Mulher da vida, acompanhante, prostituta, meretriz… mas o que eu mais gosto, mesmo, é puta”. O nome dela é Gabriela Leite, autora do livro “Filha, mãe, avó e puta”, militante pelos direitos das putas e que faleceu no início desse mês. Lutava pelo reconhecimento da profissão, com direito a tratamento digno e aposentadoria. Aquela mulher pega essa palavra, um xingamento, e a transforma em orgulho. O mesmo aconteceu com “vadia” e a Marcha das Vadias.

[+] Puta de respeito – Entrevista com Gabriela Leite.

Tudo isso me veio em mente enquanto eu xeretava um site que é uma aula de antropologia, o GPguia, um fórum de clientes de profissionais do sexo. Entre os muitos elogios e críticas, um me chamou a atenção: “a garota é linda, mas tem cara de puta”. Rapaz, uma bóia salva-vidas pra você.

Laura Schichvarger.
Laura Schichvarger.

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Laura Schichvarger tem 31 anos, nasceu e mora em São Paulo, é tradutora e mãe. Deformou-se em jornalismo, reformou-se em letras na Sorbonne Nouvelle e estudou artes e linguagem na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em Paris. Twitter.