Funk: Meninas que os meninos (não?!) gostam…

Texto de Cecília Oliveira.

Vadiagem. De acordo com o bom e velho Aurélio, eis seu conceito: “vida de vadio; malandragem. Contravenção penal que consiste em uma pessoa levar vida ociosa, sendo válida para o trabalho e não possuindo renda própria”. Há muito discutida, a ‘infração’ de levar uma vida ociosa foi ao longo dos anos reforçando seu recorte social de criminalização de classes e alguns movimentos culturais, que passaram a carregar uma alcunha criminosa. Foi assim com a capoeira – coisa de ardiloso vagabundo; com o samba – coisa de malandro preguiçoso; e agora a bola da vez é o funk – coisa de favelado traficante.

Para além do rótulo criminalizante da vadiagem, há de se levar em consideração o recorte de gênero. Homem vadio é aquele que não trabalha. Mulher vadia é puta (não no tangente a profissão, mas a promiscuidade). À época do ‘samba-crime’, mulheres não eram admitidas nas rodas, não podiam cantar, dançar ou participar da festa. “Não era coisa de moça direita”. Hoje, ser passista de escola de samba é profissão de muita ‘moça direita’. É uma arte que enche os olhos de todos, todo fevereiro/março. A mulher só serve pra ser “mãe de família” se for pudica, sem “pecados”, direita. Mas o que é ser uma moça (moça, nota-se, vinculado à virgindade) direita? Não importa se ela ganhou um premio Nobel ou descobriu a cura do câncer. Uma moça direita não pode falar de sexo. Isso é coisa de homem! Falar que gosta de sexo? Coisa de piranha!

É interessante ver que mais de um século se passou desde a criminalização da capoeira e o “endeusamento” da mulher, mas o preconceito vem passando de geração em geração, mudando apenas de objeto. Como pode tudo mudar e nada mudar ao mesmo tempo?

“Totoma! – Imagens do funk carioca”. Projeto e fotos de Daniela Corso.

A exemplo disso, no Funk, temos de um lado MC Catra, o macho alfa pegador de geral e do outro, as mulheres “pegadas”, as cachorras. Virando o disco temos Valeska Popozuda – que canta exatamente as mesmas músicas que Catra, mas que não é considerada a pegadora, é a vagabunda. Homens e mulheres podem desempenhar as mesmas funções, tomar as mesmas atitudes, optar pelas mesmas escolhas, cantar as mesmas músicas, mas lhes são reputados rótulos diferentes.

Poucos são os exemplos de mulheres que carregam o nome do Funk por onde vão, reconhecidas de igual pra igual, não depreciativo, como MC Marcelly, 19 anos, casada com um produtor musical que a dá suporte no mundo funk. Em sua música “Dona do Ouro”, a MC interpreta uma versão feminina do “Dono do Ouro”, de MC Smith.

COMPARAÇÃO EM BOX

Mc Marcelly

Nós tem um montão de novinho
E de todos nós pega uma prata
Nós da a buceta no bagulho
E se der a piroca pra outra nós capa

MC Smith

Nós tem um montão de novinha
Pra todas nós perde uma prata
Nós da condição no bagulho
Se der a buceta pra outro nós mata

Então, o que muda de fato? Qual a diferença entre Smith e Marcelly? Os olhos de quem vê e os ouvidos de quem escuta. São eles que têm o poder de ver “diferença” no intérprete de uma mesma música. “Diferença”, entre aspas mesmo.

Funk: cultura e identidade

O sexo, assim como qualquer necessidade física ou afetiva, deveria ser natural, como almoçar, como abraçar, como conversar, tendo valor igual tanto para o homem quanto pra mulher.

A nominação das coisas é singular, as interpretações é que são variáveis, de acordo com o receptor da mensagem. “Por essa forma inteiramente singular de nominação que é o nome próprio, institui-se urna identidade social constante e durável, que garante a identidade do indivíduo biológico em todos os campos possíveis ande ele intervém como agente, isto é, em todas as suas histórias de vida possíveis” (Bourdieu).

“Totoma! – Imagens do funk carioca”. Projeto e Fotos de Daniela Corso.

Da proibição ao mercado lucrativo, para homens e mulheres

Em setembro último a Lei do Funk, que confere ao gênero musical o status de movimento cultural e musical de caráter popular completou dois anos.  No mesmo dia, a Alerj revogou uma lei, criada pelo ex-deputado estadual Álvaro Lins em 2007, que restringia a realização de bailes funk e raves do estado.  A lei do ex-chefe da Polícia Civil (preso em maio de 2008, após acusações de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, entre outras) enrijeceu outra, de oito anos antes, proposta pelo então deputado Sérgio Cabral Filho (atual governador do estado). A votação foi considerada simbólica, uma vez que os deputados já haviam acordado em derrubar as fronteiras legais contra bailes funk, com objetivo de diminuir a discriminação contra o ritmo.

De acordo com pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, ano base 2008, o mercado do Funk movimenta mensalmente no estado do Rio de Janeiro, só de salários pagos, R$ R$1 bilhão e meio, entre MCs, Camelôs, DJs e equipes de som. Um MC pode ganhar, por mês, R$5.863,68. Se os shows forem em outros estados, o faturamento ultrapassa os R$17 mil. Só os MCs movimentam mais de R$ 5 milhões e meio por mês na economia fluminense.

Além de crime, coisa de vagabunda? Todos podem cantar “Ai se eu te pego. Delícia, assim você me mata!”, mas a letra não é sobre sexo, não é verdade?

Autora

Cecilia Olliveira é jornalista – Especialista em Segurança Pública e Política de Drogas na América Latina, Administração Pública e 3° Setor. Coordenadora de Comunicação da Law Enforcement Against Prohibition – LEAP Brasil. Atleticana de corpo, alma e coração!

Imagens: “Totoma! – Imagens do funk carioca”. Projeto e fotos de Daniela Corso.