E se o aborto fosse legalizado no Brasil?

Aborto. Atualmente, um dos temas mais controversos e difíceis de debater no Brasil, falar de aborto está se tornando um tabu cada vez maior. E, quantos menos informações tivermos, mais mulheres irão morrer. Recentemente, Portugal e Uruguai legalizaram a interrupção voluntária da gravidez e os resultados podem nos mostrar caminhos para o Brasil. Diferentemente do que se propaga, o aborto salva vidas. Principalmente vidas de mulheres.

Sabemos que homens trans e qualquer pessoa com útero também podem engravidar. Porém, nesse texto falaremos especificamente de mulheres cis porque também queremos focar no controle social da sexualidade dessas mulheres.

Além de salvar a vida de muitas mulheres, o que podemos ter com a legalização do aborto no Brasil são:

– Números reais de abortos no Brasil. Com dados concretos é possível identificar as principais causas para se fazer um aborto e o que pode ser feito para melhorar essas situações. Isso leva a redução do número de abortos;

– Planejamento familiar e políticas de acesso a informação e contraceptivos. Podendo ir ao serviço de saúde sem medo, as pessoas podem ter mais acesso a formas de prevenir uma gravidez e também poderão falar sobre isso abertamente com outras pessoas;

– O fim de clínicas clandestinas que colocam em risco a vida de muitas mulheres e lucram sem nenhuma fiscalização;

– Uma maternidade mais consciente, baseada em escolhas autônomas. Quando as mulheres tem a possibilidade real de escolher serem mães ou não, essa decisão pode vislumbrar as responsabilidades de uma forma mais ampla;

– Reconhecimento das mulheres como cidadãs plenas, capazes de tomar decisões que impactam diretamente suas vidas.

O que é o aborto? Como é no Brasil?

Aborto é a ação de expulsar, espontânea ou voluntariamente, um feto ou embrião, antes do tempo e sem condições de vitalidade fora do útero materno. É uma palavra tão “maldita” socialmente que até mesmo mulheres que abortam espontaneamente podem ser maltratadas ao buscar atendimento médico. Um aborto só é feito quando um feto ou embrião não tem condição de viver fora do útero, por isso há prazos até para abortos tardios.

Apesar de inúmeros projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, com o objetivo de proibir qualquer possibilidade de realizar um aborto legal no Brasil, acreditamos que a sociedade brasileira concorda com as atuais exceções: estupro, anencefalia e risco de vida para a grávida. São casos em que o sofrimento está nitidamente presente. E, importante lembrar, se a pessoa quiser seguir adiante com a gravidez em qualquer um desses casos, ela tem sua escolha assegurada, é um direito seu, mesmo que corra risco de vida. Portanto, a discussão sobre o aborto não deve ser sobre o início da vida, mas sim, sobre escolha.

Atualmente, pesquisas indicam que por ano são feitos 850.000 abortos clandestinos no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde, o SUS atende hoje 100 vezes mais casos de mulheres que tiveram complicações com abortos clandestinos do que às que pretendem fazer um aborto legal. Só em 2015, pelo menos 181 mil mulheres foram atendidas por terem complicações causadas por abortos clandestinos, e 59 morreram. Já as interrupções legais registraram 1.600 casos. Portanto, o aborto clandestino gera muitos custos para o Estado.

Com a legalização do aborto até o terceiro mês de gestação, inúmeras mulheres poderão abortar em segurança utilizando medicamentos e não precisarão de internações, gerando menos custos para o Estado. Hoje, muitas mulheres abortam após esse prazo, porque demoram a encontrar quem faça o procedimento clandestinamente ou porque precisam conseguir dinheiro para fazê-lo. Quanto mais adiantada a gravidez, maiores as chances de haver complicações.

Atualmente, o custo de um aborto legal, segundo a Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS, é de R$ 443. Este valor inclui o pagamento de equipe multiprofissional, formada por médico, psicólogo, enfermeiro, técnico em enfermagem, assistente social e farmacêutico. O custo do aborto clandestino inclui curetagens ou aspirações manuais intrauterinas, que somadas custaram ao Estado 40,4 milhões de reais em 2015.

Geralmente, a primeira coisa que as pessoas falam é que legalizar o aborto aumentaria os números de casos, pois existe essa idealização de que aborto é uma coisa que as mulheres farão aos montes. A mesma sociedade que condena uma mulher que tem muitos parceiros sexuais também acha que as mulheres vão começar a abortar regularmente. Por todos os lados há um controle social e moral constante do corpo e da vida sexual das mulheres.

O que as experiências de Portugal e Uruguai mostram é que num primeiro momento há números altos, mas que rapidamente começam a diminuir, porque uma política de legalização do aborto precisa vir associada a uma política de planejamento familiar. É isso que defende, por exemplo, a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto no Brasil, que em 2010, apresentou uma plataforma para legalização do aborto no Brasil.

Portugal: 10 anos de legalização

Em Portugal, desde 2007, as mulheres podem decidir pela interrupção da gravidez até 10 semanas de gestação. Os dados oficiais da Direção-Geral da Saúde (DGS) mostram uma tendência de decréscimo, sobretudo a partir de 2012. Entre 2008 e 2012, foram feitos mais de 18.000 procedimentos, sendo que 2011 e 2012 foram anos de grave crise financeira no país. a partir de 2013 os números caem até 2015, onde foram feitas 15.873 interrupções voluntárias. Trata-se do número mais baixo desde 2008.

Um balanço da política de 2015 mostrou que das mulheres que abortaram:

– 70,1% nunca haviam feito um aborto;

– 21,7% haviam feito um;

– 5,7% realizaram dois ou mais;

– 95,4% das mulheres que realizam um aborto optam por um método contraceptivo depois;

– Dos abortos realizados: 69,2% foram medicamentosos e 30,8% por meio de cirurgia.

De 2012 até hoje, não houve registro de mortes relacionadas ao procedimento. Apesar desses dados positivos, há críticas sobre a falta de campanhas informativas e o acesso a serviços de saúde. Há também muitas portuguesas que vão a Espanha realizar um aborto porque passaram do prazo de 10 semanas (na Espanha é autorizado até 14 semanas) ou porque querem confidencialidade, já que a mulher que faz um aborto ainda sofre muito preconceito na sociedade.

Uruguai: 5 anos de legalização

No caso do Uruguai, as ações políticas que resultaram na despenalização e autorização do aborto voluntário começaram no início dos anos 2000, por meio da implementação de uma política de redução de danos. Os serviços de saúde passaram a dar informação sobre como deveria ser feito o aborto com uso de misoprostol e pediam para que a mulher retornasse para uma segunda consulta. Não era um conselho e nem mesmo uma receita, também não diziam como conseguir o medicamento. A proposta é respeitar os direitos das mulheres a informação. Das 675 mulheres que tiveram uma “consulta prévia” entre março de 2004 e junho de 2005, 495 voltaram para a “consulta posterior”. Das 439 mulheres que receberam as informações, quase 90% decidiram interromper a gestação com o uso do misoprostol.

Atualmente, o aborto é permitido voluntariamente até 12 semanas. Os números do aborto no Uruguai estão crescendo, mas os últimos dados já apontam desaceleração de um ano para outro, de 2013 a 2014, o crescimento no número de procedimentos foi de 20%; de 2015 a 2016, foi apenas de 3,8%. Para estabelecer um planejamento familiar é preciso que a mulher esteja inserida no sistema de saúde e que os serviços estejam capacitados para atender toda população, isso leva tempo. No caso do Uruguai há críticas ao burocrático processo de autorização, que inclui além da consulta e exames comprovando a gravidez, uma entrevista com uma equipe de saúde e o prazo de 5 dias para ratificar a decisão.

Os direitos das mulheres devem ser respeitados

Em fevereiro de 2017, no Uruguai, uma juíza impediu a realização de um aborto porque um homem entrou na justiça alegando que tinha condições de criar o filho sozinho. Enquanto o processo se desenrolava havia o risco do prazo para realizar o aborto expirar. No fim, o advogado da mulher deu uma declaração de que ela sofreu um aborto espontâneo devido ao estresse agudo que estava passando.

Seria o ideal que uma mulher e um homem decidissem juntos ter ou não filho, fazer ou não um aborto. Porém, quem passa por toda gestação é a mulher e não são “só 9 meses”, uma gravidez é um processo que modifica todo corpo, afeta a rotina e o trabalho, por isso é uma decisão da mulher. “ah mas a mulher é interesseira e vai ter um filho só pra ganhar pensão”, há métodos contraceptivos como a camisinha que podem ser usados pelos homens. A partir do momento que o homem se responsabiliza pela contracepção, ele pode evitar ser enganado.

Os direitos de um embrião ou feto, vidas em potencial, não podem se sobrepor aos direitos de pessoas nascidas, jovens ou adultas. Mulheres que estudam, trabalham, tem outros filhos, acreditam em Deus. No Brasil, a discussão do aborto é sobre controle e autonomia. Quem deve controlar o direito a reprodução? A pessoa que engravida ou o Estado? São essas questões que o Feminismo coloca ao lutar pelo reconhecimento do direito ao aborto legal como um direito das mulheres.

É muito comum as pessoas dizerem “fecha as pernas”, “só engravida quem quer”. Porém, ninguém cobra isso dos homens, o controle da vida sexual das mulheres é o foco. Assim como a responsabilidade por um filho que nasce é sempre da mulher, visto que inúmeros homens abandonam seus filhos, uma prática recorrente na sociedade brasileira. Ter um filho não pode ser uma condenação por ter feito sexo por prazer.

É muito difícil, até mesmo para nós feministas, trabalharmos com dados imprecisos. A mortalidade materna no Brasil diminui por meio dos investimentos na saúde pública, mas as mortes por complicações decorrentes do aborto seguem altas. Especialmente porque muitas mulheres tem medo de ir até o serviço de saúde.

Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) concluiu que países com leis que proíbem o aborto não conseguiram frear a prática e que, hoje, contam com taxas acima daqueles locais onde o aborto é legalizado. Já nos países onde a prática é autorizada, ela foi acompanhada por uma ampla estratégia de planejamento familiar e acesso à saúde que levaram a uma queda substancial no número de abortos realizados. É isso que queremos, é por isso que lutamos, por menos abortos clandestinos e mulheres mais autônomas.

Educação sexual para escolher. Contraceptivos para prevenir. Aborto legal para não morrer.

Créditos da imagem: Rio de Janeiro, 2014. Manifestação pela legalização do aborto em Copacabana. Foto de Marcos Tristão/Agência O Globo.