O mais importante sobre a Slutwalk

Texto de Marjorie Rodrigues.

Logo após essa foto ser tirada, me ofereci para estrear no Blogueiras Feministas com um relato sobre a Marcha das Vadias (ou “slutwalk”, como gosto de chamar — não é porque ache inglês mais “chique”, não. É porque é mais curto, então é mais rápido de escrever).

Blogueiras feministas na Slutwalk São Paulo, 04/06/2011. Foto de Luka Franca.

Ao me sentar diante do computador, perguntando-me como começaria o texto, meu primeiro instinto era reclamar da repercussão que a manifestação teve nos principais portais de notícias.  Queria rebater, ponto por ponto, os comentários desinformados, ignorantes ou mesmo abertamente agressivos que vi na Folha, no UOL, no Terra, no Estadão e também nas redes sociais.

Meu primeiro desejo era expressar a minha indignação diante de gente que não considera estupro uma questão relevante o suficiente. Expressar a minha repulsa diante da falta de humanidade daqueles que não se compadecem das vítimas, dizendo: “se você se veste como vadia, depois não reclame”. Ora, que absurdo é esse de achar que alguém que tem seu corpo invadido, agredido, não pode falar nada?

Queria reforçar quão descabida é a idéia de que alguém deva “se dar o respeito” em vez desse respeito vir de graça pelo simples fato da pessoa ser… bem, uma pessoa. No meu mundo, todo ser humano merece ser tratado com respeito, independentemente de cor, origem, classe social, orientação sexual, indumentária, whatever. Trata-se as pessoas com educação, respeita-se o seu espaço. Ponto. Esses são meus princípios. Mas, pelo visto, para boa parte da população, às mulheres isso não se aplica. Elas precisam conquistar o respeito dos outros previamente. E como se faz isso? Reprimindo sua sexualidade. Tentando apagar de si traços que demonstrem que ela é um ser sexuado, dotado de desejo. Faz algum sentido? Nenhum. Para mim é tão óbvio que isso é opressivo — afinal, não somos eunucas. Não somos amebas. Somos seres humanos, temos tesão. A sociedade trata o corpo das mulheres como uma questão coletiva — todo mundo pode dar pitaco, dizer o que se pode e o que não se pode fazer com ele. Não lembro mais onde li essa frase, mas é bem por aí: se não fazemos nada, somos santinhas, sem sal, Sandys, caretas, cabaças, puritanas. Se fazemos alguma coisa, qualquer coisa, somos putas. Resumindo, a mulher não ganha nunca. Sua conduta sexual está sempre sob escrutínio público — e cada coisinha pode ser um escorregão. Mas, ei, sexualidade é coisa pessoal, privada. Se o corpo é nosso, cabe a nós, mais ninguém, decidir como, quando e com quem nosso tesão será descarregado. Ninguém tem nada com isso. Incrível que, em 2011, ainda tenhamos que lutar para dizer às pessoas que cuidem das suas vidas.

Outro dos meus primeiros instintos era falar, mais uma vez, às amigas que discordam do nome da marcha. Queria dizer que o termo “vadia” perde a carga pejorativa, na medida em que o propósito da manifestação é justamente tirar a validade da palavra. Não somos vadias porque não existem vadias. Não somos santas porque não existem santas. O que existe são mulheres diferentes, com maneiras as mais variadas de viver sua sexualidade. Saímos na rua para proclamar essa liberdade — e não para dizer que somos vis e não-dignas de respeito (que é o que a sociedade diz das vagabundas). Não estamos, de maneira nenhuma, assumindo para nós a carga pejorativa. Estamos é zombando dela. Afinal, se nem a santa nem a puta existem, então não faz a menor diferença chamar a marcha de “marcha das vadias” ou “marcha das santas”. Porque ambos os títulos são irônicos. Eu queria utilizar meu post de estreia para perguntar às meninas que discordaram do nome da marcha se elas pensariam o mesmo se o título fosse “marcha das santas”. E pedir para que fossem sinceras consigo mesmas, checando se a repulsa ao nome não é um reflexo já arraigado de querer se afastar da figura da puta, tão temida e indesejável. Eu queria dizer a essas meninas que, se o termo não corresponde à realidade, então podemos nos apropriar dele, brincar com ele, zombar dele. É claro que a zombaria não muda o fato de que a sociedade nos classifica entre santas e vadias. A opressão continua. Mas a resistência começa por aí.

Queria usar meu primeiro texto também para meter o pau naquele bocó do Danilo Gentili, que parece se fingir de desentendido, como se não soubesse que a liberdade de expressão não é, nunca foi nem pode ser ilimitada. “As pessoas têm que falar o que quiserem”, diz ele no site da Folha. Minha primeira vontade, diante da tela em branco, era dizer o óbvio: não, Danilo, nem você nem ninguém pode dizer tudo o que quiser. Calúnia, injúria, difamação, racismo, são apenas alguns exemplinhos do que não é permitido.  E não, uma piada não é só uma piada. Quem a diz, como diz, onde diz, quando diz, em que contexto, qual o status dessa pessoa na sociedade, quem são os ouvintes, tudo isso tem o poder de transformar o discurso. E, através das piadas, conhecemos como uma sociedade debocha de si mesma e das outras. Quem está em cima, quem está embaixo. Quais são os estereótipos vigentes. Muita coisa cabe em uma piada. Muita coisa cabe nas palavras. De modo que nenhum discurso, nenhuma frase, é inócua. Isso o Danilo devia saber, pois é formado em publicidade e propaganda. Meu primeiro instinto diante da tela em branco, portanto, era dizer: “Danilo, meu filho, pega seu diploma e rasga. Você não entende nada de comunicação!”. Ou: “ei, Danilo, liberdade de expressão é bacana, mas não te exime de responsabilidade no uso dessa liberdade. Se você trabalha na mídia, tem o poder de influenciar milhões de pessoas. Então é bom pensar bem antes de falar qualquer merda. Fazer piada de estupro por quê, para quê, a troco de quê? Não leva a nada. A piada do seu colega Rafinha só faz humilhar e agredir as vítimas de estupro, como se elas já não tivessem sofrido o suficiente. Se você e seus colegas fossem mais responsáveis com o que dizem, talvez você não tivesse dificuldade para encontrar patrocinadores para seu talk show. Talvez a passeata não terminasse na frente do seu bar.”

…Pensei em escrever tudo isso. Desenvolver tudo isso.

Mas aí percebi que não podia fazer dos ignorantes, dos machistas e dos ausentes o centro da questão. Porque as protagonistas somos nós. Nós que estivemos lá. Nós que marchamos. Nós que colamos nossos cartazes na porta do Comedians. O mais importante da Slutwalk não são eles  — somos nós.

Juntas, fizemos algo bonito. Erguemos nossa voz,  bradamos nosso orgulho e nossa indignação. Num mundo que coloca as mulheres para competir e implicar umas com as outras, nós fomos à rua juntas, dar uma bela demonstração de irmandade. Nos divertimos e fazemos política juntas. E, juntas, como se canta, “seguiremos em marcha até que todas sejamos livres”.

Posso soar um pouco clichê, mas acho que de vez em quando é bom a gente lembrar. Do significado do que fizemos e do quanto ainda podemos fazer. Do exemplo que passamos a quem nos viu na rua e a quem ainda vai nos ver. A gente às vezes se deixa engolir pela repercussão negativa, pelos jornais que nos retratam como algo puramente “inusitado”, pelas outras mulheres que acham  que levam vantagem ao nos julgar (como se o tapinha nas costas que a sociedade lhes dá quando elas nos chamam de putas fosse eterno, absoluto —  e não constantemente revogável. A próxima Geisy pode ser você, querida!). E aí a gente se perde num ciclo de indignação e contestação, e não pára para respirar, sorrir e enxergar a beleza do ato empreendido. A beleza da resistência. Então a mensagem que eu gostaria de passar, nesse meu primeiro post aqui no Blogueiras Feministas (talvez esta seja a mensagem mais importante de todas as que a gente diz aqui, aliás) é essa: veja quão bonito é isso que a gente faz na(s) marcha(s), neste blog,  na lista de discussão, nos grupos de estudos, nas conversas cotidianas. Num mundo que nos força goela abaixo a ditadura da beleza, juntas respondemos produzindo uma das coisas mais bonitas do mundo.

Parabéns a nós todas.

[+] Eu sou vadia, beijos. Da Nessa Guedes

[+] Nem vadias, nem santas: livres. Da Bruna Provazi

[+] Slutwalk SP: um grito diversificado contra o machismo. Da Natalia Mendes

[+] Marcha das Vadias. Matéria online da Revista TPM com entrevistas de várias blogueiras feministas.

Datas das Próximas Marchas:

18/06 vai acontecer Marchas das Vadias em Belo HorizonteBrasília, Juiz de Fora e Recife

Rio de Janeiro ainda está fechando data.

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Marjorie Rodrigues escreve no blog Feminismo e Cultura Pop.