Xuri, tortura de presos e a banalidade do mal

Texto de Camilla Magalhães.

Na quinta feira, 10 de janeiro, a Comissão de Prevenção e Enfrentamento à Tortura do TJ-ES recebeu denúncia de que, após reclamarem da falta d´água, 52 detentos do Presídio Estadual de Vila Velha 3 (PEVVIII) foram levados ao pátio e lá obrigados a ficarem sentados no cimento quente. O episódio teria ocorrido no dia 02 de janeiro e os detentos ficaram com queimaduras sérias nas nádegas. Não bastasse a tortura impingida, foram isolados, tiveram suspensas suas visitas e foram deixados, com as queimaduras expostas, sem atendimento médico, até que um funcionário do local fizesse a denúncia à Comissão na última quinta feira. (a notícia pode ser encontrada aqui. Também, no site do TJ – www.tj.es.gov.br – há uma nota à população sobre o caso. As imagens são fortes e estão logo na entrada)

Não me causa indignação presos que ficaram sentados por horas no cimento quente em um dia de sol. Eu não me indigno com o fato de esses mesmos presos terem ficado dias após o ocorrido sem atendimento médico, sem contato com suas famílias, sem qualquer auxílio. A explicação está neste texto.

O que me causa indignação é que somos o terceiro país em número de presos – são 550 mil – e que ainda com esses números, há um discurso de que somos o país da impunidade (punimos muito, mas, talvez, punimos muito mal). Também é de causar revolta que no Rio de Janeiro o último concurso para contratação de assistentes sociais para o sistema prisional foi em 1998. Em São Paulo, segundo informações do CNJ, “há 319 psicólogos para uma população carcerária de cerca de 180 mil presos”. A notícia, no portal do CNJ, chama atenção para o “dramático quadro da assistência à saúde no sistema prisional apresentado por especialistas que participaram do Seminário Atuação no Sistema Prisional Brasileiro, na sede do Conselho Federal de Psicologia, em Brasília, na última sexta-feira (9/11)”. No RJ, na realidade, houve redução de 50% do quadro de profissionais de saúde do sistema prisional, que recebem um salário de R$ 1.686, enquanto o Estado paga mais de R$ 3,2 mil a um inspetor penitenciário. (FONTE: CNJ)

Na verdade, causas para indignação são muitas. Em um leque assustador de maus tratos, desrespeito a direitos humanos, barbárie e violência, é possível encontrar toda sorte de motivo para se indignar. Alguns exemplos:

1) Em janeiro de 2013, o Brasil foi denunciado à OEA por más condições de presídio em Porto Alegre “que enfrenta superlotação da população carcerária e precariedade das instalações, entre outros problemas”, denúncia apresentada por entidades que compõem o Fórum da Questão Penitenciária. FONTE: Agência Brasil

2) Em vários Estados da federação, mulheres são comumente submetidas a revistas vexatórias quando das visitas aos presos.

3) Não é raro encontrar denúncias de condições sanitárias precárias e desumanas no ambiente dos presídios: banheiros destruídos, esgoto que corre dentro do presídio, falta de água, alimentação em condições precárias.

4) Também é corrente a superlotação, realidade que já fez dessa palavra comum no debate sobre o sistema carcerário e o cenário é de presos dormindo enfileirados ou revezando-se em diferentes horários para dormir, presos sem colchão, pessoas “empilhadas” e amontoadas. (Veja algumas imagens aqui, aqui e aqui) 

5) É parte da realidade carcerária brasileira o número excessivo de presos provisórios – pessoas presas em função da existência de um inquérito policial ou um processo instaurado para investigar, acusar, processar e julgar a denúncia da ocorrência de um crime. Presos, portanto, que ainda não foram julgados e condenados. Segundo números do Ministério da Justiça “quatro de cada dez presos são mantidos encarcerados no Brasil sem julgamento definitivo, equivalentes a 40% da população carcerária brasileira, que é aproximadamente 500 mil detentos”. E isso, considerando que a prisão provisória é apenas uma – a mais grave – dentre as medidas cautelares possíveis de utilização para a garantia do processo e de sua instrução.

6) Nossos presídios, além de tudo o que foi acima exposto, tem idade, cor e classe social. Em seminário promovido pelo CNJ e Ministério da Justiça no ano passado, a deputada federal Érika Kokay (PT-DF) ressaltou que há um recorte definido para a população carcerária no Brasil, o que chamou de “prisão seletiva”, e que afeta a população de baixa renda, jovem e de origem negra.

O perfil traçado pela deputada é verdadeiro: segundo o Ministério da Justiça (dados de dezembro de 2011), a população carcerária do Brasil era de 514.582, uma média de 269,79 presos para cada 100.000 habitantes. Dentre os presos custodiados, 441.907, aproximadamente 93,7%, são homens, e, 29.347, são mulheres. Dos 471.254 presos custodiados pelo sistema penitenciário, 301.721 possuem menos do que o ensino fundamental completo, ou seja, aproximadamente 64% da população carcerária não possui educação básica. Presos com ensino superior completo são 2.062, ou aproximadamente 0,43%. Do total da população carcerária o número de negros e pardos é de 274.253, aproximadamente 58% do total. E, no quesito faixa etária, 252.082 dos presos possuem entre 18 a 29 anos.

7) Outro dado que também causa indignação é que a tortura nas prisões é a principal causa de reclamação ao Disque Denúncia, mantido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – 65% das reclamações relacionadas com o sistema penitenciário referem-se à tortura.

Como dito no início, não são poucos os motivos para indignar-se. Voltando ao caso específico do Espírito Santo, a Comissão de Prevenção e Enfrentamento à Tortura do TJ-ES foi criada em dezembro de 2011, período posterior à denúncia do sistema penitenciário capixaba à OEA e à ONU diante de situação que incluía casos de superlotação, tortura, maus tratos e presos mantidos em containers. A Memória da Comissão, constante do site, cita diversos casos em diferentes presídios do Estado: condições sub-humanas de tratamento dos presos; falta de água; presos relatando ameaças dos carcereiros se os denunciassem pelos maus tratos; um menor torturado na Unidade de Atendimento Inicial; uma presa grávida submetida a sessões exaustivas de agachamento como punição; a existência de um cômodo isolado e sem iluminação em um dos presídios, chamado “quarto do castigo, onde eram colocadas crianças, além de alimentação vencida destinada aos filhos e filhas das presas. Desde seu início, a Comissão teve um prazo máximo de apenas 34 dias seguidos sem denúncias de torturas.

E por que dizer que não me indigno com as denúncias de Xuri?

Foto de .v1ctor.
Foto de Victor no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Os casos e dados acima relatados mostram uma realidade doente: maus tratos, condições precárias, sistema penal e penintenciário mal gerido, falido e guiado pela política do encarceramento, mostram o reflexo da constante opção por um Estado Penal Policial, de uma política de Segurança Pública militarizada, violenta e seletiva ou, como disse o Presidente da OAB-ES, Homero Mafra, de um tempo de “aceitação de um pacto velado das violações constitucionais, onde a preocupação não é com a construção de uma sociedade mais justa mas, sim, com uma sociedade mais segura – como se a construção da segurança não passasse por uma melhor distribuição de renda, pela melhoria na educação, pelo acesso, enfim, aos bens mais elementares da vida”.

As violações dos direitos dos presos viraram cotidiano. A seletividade do sistema que coloca nas prisões os jovens negros e pobres também. E nada disso parece causar espanto. O que se faz quando a rotina é doente? Quando a patologia se torna a própria fisiologia do sistema? O que se faz quando o discurso corrente e midiático se esquece desses dados? O que se faz quando o discurso corrente e midiático se esquece dessas pessoas? Quando a resposta do Estado está mais voltada para a proteção da “sociedade” do que com esses homens torturados?

Nessa opção pelo estado penal policial, mais jovens negros e pobres são presos, torturados, excluídos e mortos. O discurso produzido de que a sociedade está cada vez mais violenta e que o debate da segurança pública é fundamental cria e fomenta o medo. Num ciclo cruel, os amedrontados demandam mais controle, mais repressão, mais violência e aqueles verdadeiros vitimados pelo ciclo da violência são novamente presos, torturados, excluídos e mortos. E assim tem sido nessa sociedade herdeira da escravidão.

Xuri não me causa indignação: causa repulsa, desespero, nojo, indignação, tristeza, desalento. Indignados deveríamos estar já há muito tempo. Mas se nos acostumamos com essa rotina doente, se estamos anestesiados, quanto mal podemos suportar antes que algo seja efetivamente alterado?