O preço, o custo e o valor da liberdade

Texto de Lívia de Melo.

Hoje cedo estava eu na lanchonete próxima à minha casa, tomando meu cafezito e comendo pão de queijo, como de costume, com meu “insuportável bom humor matinal” (by Danillo), quando chegaram uns rapazes que trabalham por ali e começaram a falar sobre a última rodada do brasileirão. Cena típica de uma manhã de segunda-feira, a não ser por um detalhe: na roda de conversa eis que surge uma moça. Bendita fruta entre os homens. Pois bem, conversas triviais, alguém comenta algo sobre a lamentável fase em que meu amado clube Tricolor Paulista se encontra, e eu, sim, eu mesma, entro na conversa com uma frase clichê, mas que eu espero muito que seja verdadeira: “Que isso, gente, time grande não cai não! Nós vamos dar a volta por cima, ‘cês vão ver!”.

Silêncio.

Foi nítido o estranhamento, inclusive do dono da lanchonete, que me conhece e já me viu inúmeras vezes usando uma camisa do São Paulo. Então, olhei para eles e disse: “Que foi, gente?! Só porque estou em Minas não posso torcer para time de outro estado?!”. Eles deram uma risadinha. Paguei meu café e saí.

Óbvio que meu comentário foi irônico. O estranhamento deles não foi por eu torcer pelo São Paulo. Eu poderia ter feito qualquer comentário sobre o Cruzeiro (líder da série A), ou sobre o Atlético (campeão da Libertadores), que a reação não seria tão diferente. Então, me lembrei de outra “advertência” do meu amigo Dan: “moça de respeito não sai por aí falando de futebol igual macho”. Não foi bem com essas palavras, e, embora tenha sido só uma brincadeira bem irônica entre amigos, num contexto específico, sei que sua advertência corresponde à realidade.

Moça de respeito… ok! Quem sou esta moça? Classe média, branca, formada, funcionária pública, católica, crescida numa TFM – Tradicional Família Mineira; é, acho que cumpro bem os requisitos, a não ser por um detalhe que me faz descer para a zona de rebaixamento, bem para lá de onde está meu time. O meu pequeno detalhe é que renunciei ao protocolo de “moça de respeito”, e já faz algum tempo.

É como definiu muito bem meu amigo Zeh Leão: vivemos num mundo em que existe um manual de “coisas que podem e coisas que não podem nos dar prazer”. Meu Deus, estamos no século XXI?! Eu tenho cá minhas dúvidas.

Foto de Alberto Suárez no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Foto de Alberto Suárez no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Bom, voltando à “moça de respeito”, de acordo com esse manual estou mesmo desclassificada. Uma “moça de respeito” não gosta de futebol, muito menos fala de futebol assim, abertamente, no meio de homens. Meu comportamento foi extremamente inadequado, e agora?! Eu dei liberdade para eles. O que estão pensando de mim agora, meu Deus?! Aliás, uma “moça de respeito” não entra em assunto de homem, seja qualquer assunto! Eu devia ter mantido minha postura de sempre, ter feito meu lanche calada e pronto. Só que não. Eu subverti. E agora?! Estou preocupada. Que bom que vou passar um tempinho viajando e até que volte a essa lanchonete já terão esquecido o vergonhoso episódio (ou não).

Mas aí entra outra coisa que a “moça de respeito” não deveria fazer: vou viajar sozinha. É, sozinha, e não é a primeira, nem segunda, nem terceira vez. Uma moça de família viajando sozinha por aí é quase uma ofensa ao macho alfa, ao homem padrão (e que bom que conheço poucos assim). Uma mulher que viaja sozinha é independente demais, é livre demais, é… AVENTUREIRA demais! No sentido mais pejorativo da palavra (inclusive escutei esse termo em Salvador, de um homem que “invadiu” minha mesa, quando jantava, sozinha, depois de participar de um congresso).

A situação vai só se agravando: que “moça de respeito” é essa, que viaja a trabalho, sozinha, e que o namorado “deixa” ela fazer isso e, que além de tudo, ainda senta num bar, toma um, dois, três chopps, e come sozinha?! Não, essa moça só pode ser uma aventureira, ou deve estar à procura de um macho-visa (ele chegou a se oferecer pra pagar a minha conta, se eu ficasse para beber mais um chopp com ele).

E pode piorar. Na cartilha da “moça de respeito” estou me tornando inconveniente; já passo dos 30 anos e não tenho uma argola dourada no dedo (pelo menos no dedo direito, neh?!). Solteirona. Balzaquiana. “Mas você não casou por quê?!”, ouvi recentemente da mãe de uma amiga de infância, que é da minha idade e já tem lá seus dois filhos. Detalhe para o verbo no pretérito: VOCÊ NÃO CASOU! Tipo, já passou do prazo. Agora o que vier é lucro. “Quem sabe você não arruma um marido nessas viagens?”. Claro, porque estou desesperada à procura de um. Ou deveria estar. O bom senso comum, a cartilha da moça de respeito, o manual de coisas que devem ou não dar prazer, praticamente ordena que eu arrume um marido, agora, ou calo-me para sempre. Uma trintona solteirona é vergonha. É triste. É deprimente. E o pior é que recentemente ouvi algo assim de uma amiga, que ainda nem chegou cá (nesta década maravilhosa dos 30).

Dia desses ouvi uma das cantadas mais sujas da minha vida, incluindo as famosas “cantadas de pedreiro”, por estar usando uma saia curta. Naquele momento eu só quis cobrir minhas pernas.

“Mas você até hoje não arrumou um namorado sério?!” Meu bem, o que é um namorado sério? Deve ser um chato, neh?! Não suporto gente séria. Como li uma vez por aí, por que é que eu vou querer um relacionamento sério, se um relacionamento engraçado é muito melhor? Levei isso pra vida. E mais: além de renunciar ao protocolo de boa moça, também não estou à procura do bom reprodutor. Eu tapo os ouvidos quando as colegas “caça-marido” começam a traçar o perfil do homem ideal. E fico pasma de ver que ainda existe mulher que realmente quer um homem para depender dele (que tenha carro, bom emprego, boa estrutura, etc.). Esse homem padrão, esse macho alfa, não é para mim. Eu não preciso dele, eu não quero um homem para “precisar” dele.

Vou continuar falando de futebol, vou gritar palavrões quando meu time perder (e ultimamente tenho expandido meu vocabulário nisso), vou tomar meu café em copo americano da lanchonete da esquina e meu chopp em qualquer canto do Brasil ou do mundo que eu puder visitar, quer meu namorado “deixe” ou não. Até mesmo porque eu não vou ter um namorado que “deixa” eu fazer as coisas. Vou usar a roupa que eu quiser. Vou para a balada que eu quiser. Vou sair com o cara que eu quiser e quando eu quiser. Vou desafiar a regra? Já desafiei. O que eu tenho a perder? Tenho a perder o rótulo de boa moça. E o que eu vou ganhar com isso? Simplesmente, a liberdade de ser eu mesma.

O que me dói é pensar que em pleno 2013 essa liberdade ainda tenha um custo tão alto…

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Lívia de Melo é bióloga e bacharel em Letras pela UFMG. Trabalha na Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte e atua em pesquisas na área de Lingüística Histórica. Gosta de viajar e de estar com os amigos e nas horas vagas escreve alguns contos e crônicas.