Faltava um corpo ou os usos políticos do cadáver

Texto de Camilla de Magalhães Gomes.

– Cleonice Vieira de Moraes, 51 anos, faleceu após inalar gás lacrimogênio de bomba atirada pela Polícia em uma manifestação no dia 20/06/2013.

– Marcos Delefrate, 18 anos, morto atropelado durante manifestação também em 20/06/2013.

– Fernando da Silva Cândido, 34 anos, morto dias depois de inalar gás lacrimogênio em manifestação do dia 20/06/2013.

 – Ademir da Silva Lima, 29 anos; André Gomes de Souza Júnior, 16 anos; Carlos Eduardo Silva Pinto, 23 anos; Ednelson dos Santos, 42 anos; Eraldo Santos da Silva, 35 anos; Fabrício Souza Gomes, 26 anos;  Jonatha Farias da Silva, 16 anos; José Everton Silva de Oliveira, 21 anos; Renato Alexandre Mello da Silva, 39 anos e Roberto Alves Rodrigues, mortos por ação do BOPE na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré em 24/06/2013, cujos nomes sequer saíram na imprensa. 

– Valdinete Rodrigues Pereira e Maria Aparecida, atropeladas no dia 24/06/2013 em Cristalina (GO).

– Luiz Estrela, morto por espancamento em 26/06/2013 .

– Paulo Patrick, 14 anos, atropelado por um táxi durante manifestação em Teresina (PI), no dia 26/06/2013.

–  Douglas Henrique de Oliveira Souza, 21 anos, que, acuado pela ação da polícia, caiu do Viaduto José Alencar durante manifestação em 27/06/2013  e faleceu. 

– Luiz Felipe Aniceto, 22 anos, que caiu do mesmo Viaduto, morreu em 11/07/2013.

– Um homem, ainda não identificado, atropelado e morto no mesmo dia 06/02/2014 em que o cinegrafista Santiago Andrade foi atingido pelo rojão.

Estes são alguns dos mortos até aqui. Mortos invisíveis e inservíveis.

MAS.

Faltava um corpo. Faltava O corpo. Uma pessoa morta pra servir de mártir e justificar a barbárie do Estado.

Amarildo não deu conta. Morto justamente por essa barbárie, não atendia aos interesses da “lei e ordem” contra as “forças oponentes”. Os mortos acima citados não podiam ser computados, caídos pela ação da Polícia. O jovem negro amarrado ao poste também não. Vivo, mas sem voz, é também objeto do medo que aceita o genocídio como mecanismo de segurança.

Agora sim, agora chegou o cadáver que servirá de exemplo. E que será diariamente vilipendiado como meio de legitimar a violência de antes (com um efeito retroativo que esconde a genealogia por trás da reação popular), a de agora e a que ainda está por vir — e não será pouca.

Os discursos que se seguirão usarão dele, da compaixão pela dor da família e pela morte precoce e estúpida para criar o medo e trazer a reboque mais repressão. O “cidadão de bem”, assustado, agora sim, irá se sensibilizar da fatalidade e, como é de ser nesse ciclo da fabricação do medo, estará junto da violência estatal, que defenderá por ser necessária para sua segurança contra os “terroristas”.

Sim, terroristas. Chegou aquele dia em que o termo ganha os jornais, rádios e televisões brasileiros, inserindo o país nessa “onda global” contra o terrorismo, que ignora o verdadeiro terrorismo — o de Estado — e anuncia caricaturas de inimigos, rifando a vida dos mais frágeis e usando a morte de um homem como símbolo.

O cinegrafista Santiago Andrade não é o primeiro morto nessa conta. É, no entanto, o primeiro que serve aos fins políticos que a “guerra ao terror” necessita. Antes dele, outros tantos corpos invisíveis foram atirados ao chão, e sobre isso pouco se falou. Que balança se usa pra medir essas mortes e determinar como usá-las (ou não usá-las) politicamente?

Depois da morte de cinegrafista: Senado pode votar urgência de projeto que tipifica terrorismo. Em sua conta no twitter, a Presidenta Dilma informou que determinou que a Polícia Federal apoie as investigações. Em comentário na rádio CBN, os jornalistas usaram o termo “terrorismo” ao comentar a morte do cinegrafista.

Está só começando. E não é de se surpreender. Cantamos essa bola TANTAS vezes no ano passado. O desafio é não comprar o novo inimigo que te vendem.

Estado de exceção: FIFA.

GAME: ON. ***

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Nota

Esse texto não quer ser uma nova medição do valor dessas mortes. Lamentamos profundamente o falecimento de Santiago Andrade. Com esse texto, contudo, quero apenas levantar voz sobre a invisibilidade de tantas outras mortes e o uso nefasto que se faz agora da tragédia envolvendo o cinegrafista. Agradeço a Eduardo Sterzi que publicou em seu Facebook uma lista dos mortos até aqui.

[+] Justiça ampla, geral e irrestrita. Por Niara de Oliveira.

Manifestantes e policiais se enfrentam em estação do metrô do Rio após protesto contra aumento na tarifa. Foto de Domingos Peixoto/Agência O Globo.
Manifestantes e policiais se enfrentam em estação do metrô do Rio após protesto contra aumento na tarifa. Foto de Domingos Peixoto/Agência O Globo.