A importância de a gente brigar pelas palavras (e logo, por conceitos) sempre foi e continua sendo enorme na construção de uma sociedade outra. No nosso caso, de uma sociedade menos opressora, sem machismo, igualitária. A Karla explicou direitinho esse processo aqui no nosso blog (leia um post dela aqui e outro também dela aqui). Hoje trago uma questão que pode ser polêmica nesse sentido. Polêmica porque uma das bandeiras feministas é o direito ao parto humanizado, ao tratamento humanizado da gestante, ao direito à saúde da mulher gestante. Outra de nossas bandeiras históricas e unânimes é o direito ao aborto e o direito ao próprio corpo. Essas não devem ser, numa visão feminista, bandeiras contraditórias, mas algumas correntes de ideias sobre concepção, gravidez, maternidade parecem não entender muito bem qual a reivindicação feminista.
Talvez o título do post seja meio chocante pra algumas pessoas mas o assunto que trago é justamente esse: quão fundamental é, para a estratégia e a luta feminista, sabermos diferenciar as coisas.

A primeira pergunta que imagino a partir do título que elaborei é quando então um feto passa a ser um bebê? Não existe consenso na ciência sobre quando começa ou deixa de começar a vida e muito menos as religiões têm uma resposta unânime pra isto. Um feto, porém, é um organismo vivo. Um bebê também. Um bebê é um indivíduo, um feto não. Pessoalmente, defendo que chamar um feto de bebê seja uma decisão da grávida. Porque é a relação dela com aquele organismo vivo que deve determinar o significado da gravidez. Esse significado, por sua vez, só pode ser estabelecido a partir da visão de mundo dela – que determinará se em dado momento esse organismo é um feto ou um bebê. Assim, uma grávida de 4 meses pode considerar esse organismo um feto enquanto outra com o mesmo tempo de gestação pode considera-lo um bebê. Deve ser a única forma justa de definir essa conceituação.
Só que esse feto ou bebê é muitas vezes tomado como se não fosse parte do corpo da grávida. A imagem que temos de um feto é um organismo com cordão umbilical flutuando no nada, como lembra a antropóloga e feminista Marilyn Strathern em After Nature. Considera-se o feto como outro indivíduo, como outra pessoa e há inclusive tentativas bem absurdas de que ele tenha direitos sobre a própria grávida tramitando em diversos congressos pelo mundo. Chamá-lo de feto é, a meu ver, lembrar que é um organismo dependente, que é uma parte do corpo da grávida e não outro ser. Não ainda. Depende da substância da grávida pra existir. Essa diferenciação é fundamental na luta pelo direito ao aborto e para compreendermos e enfatizarmos que essa luta é pelo direito a nosso próprio corpo também no momento em que estamos (se ficarmos) grávidas.
O fato de uma mulher estar grávida não faz dela mãe. “Mãe” é uma construção bem complexa, embora um certo senso comum tenda a simplifica-la demais. Escrevi recentemente sobre a possibilidade atual de uma criança ter três mães – a genética, a biológica, a cultural (leia aqui o artigo) .Essa diferenciação entre quem fornece o código genético, quem fornece substância biológica durante a gravidez e quem fornece a cultura depois do nascimento já é suficiente pra se questionar esse “status” de mãe dado genericamente às grávidas e tão naturalizado em nossos discursos. O modelo em que a mesma pessoa ocupa essas três funções “maternas” é frequentemente tomado como “normal” e como único possível. Essa ideia de maternidade é muito própria da nossa sociedade e, mais ainda, de uma certa época nossa. Romper com essa associação automática grávida = mãe significa colocar a não-obviedade do supostamente óbvio em evidência.
Faço pessoalmente uma política minha, individual, em separar muito bem estes termos. Ao falar, questiono-me se estou falando de feto ou de bebê, de grávida ou de mãe (e, caso de mãe, de que mãe?). Escolho a palavra pelo que a palavra quer dizer. Uma escolha que, a meu ver, sobretudo no feminismo, precisa ser sempre muito criteriosa.
E vocês, já haviam reparado nestas questões?