Porque filmei meu aborto

Aviso: no Brasil, o aborto só é permitido por lei em casos de estupro, risco de vida para mulher ou feto anencéfalo. Não temos como oferecer nenhuma informação sobre como fazer um aborto ilegal. Esse texto trata da realidade de uma mulher norte-americana. 

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Texto de Emilly Lets. Tradução de Bia Cardoso. Publicado originalmente com o título: ‘Why I Filmed My Abortion’ no site da revista Cosmopolitam.com em 05/05/2014.

Quando Emily Letts descobriu que estava grávida, ela sabia que iria fazer um aborto. Então, ela decidiu filmá-lo. Letts, 25 anos, é conselheira na clínica de aborto Cherry Hill Women’s Center em Nova Jersey, que é onde ela fez seu aborto. O vídeo, que não possui imagens chocantes, foca em mostrar seu rosto, sua respiração e uma música cantarolada durante o procedimento. A equipe médica do outro lado do lençol está fora de perspectiva. Quando ela se inscreveu e ganhou o concurso cultural Abortion Care Network’s Stigma Busting, seu vídeo se tornou viral. Nesse texto, ela explica porque decidiu compartilhar sua experiência publicamente.

Emily Letts.
Emily Letts.

Tornar-me uma conselheira sobre aborto foi algo inesperado. Trabalhei como atriz profissional por muitos anos. Eu adorava atuar, mas me sentia muito deprimida a maior parte do tempo. Eu não gostava do meu corpo. Eu me sentia competindo com outras mulheres. Sentia-me completamente alienada de mim mesma e de todos os outros, porque eu tinha a intenção de ser bem sucedida.

Eu tinha uma amiga que era doula, especializada em nascimentos, e ela me fascinava com suas histórias sobre partos e vidas crescendo. Isso me levou a começar a olhar para o meu corpo de uma forma totalmente diferente. Tornei-me o que é chamado de “birth junkie”, uma pessoa viciada em assuntos sobre nascimento. Comecei a estudar e pesquisar para ser uma doula e assistia cada documentário que chegasse em minhas mãos. Durante meu treinamento, aprendi que existem três tipos de doulas: doulas especializadas em nascimento, adoção e aborto. Uma luz acendeu na minha cabeça.

Eu nunca tinha militado pelo direito ao aborto antes mas, a ideia de ajudar mulheres que decidem fazer um aborto, apoiando-as e garantindo que elas continuam sendo lindas e maravilhosas ressoou profundamente em mim. Eu tinha passado tanto tempo nas armadilhas da competição com outras mulheres, colocando muita pressão sobre mim mesma que tudo que queria era ajudar as mulheres. Entrei em contato com Cherry Hill logo depois que terminei meu treinamento. Pedi para ser voluntária, mas em vez disso eles me chamaram para uma entrevista de emprego. Fui contratada para ser uma das pessoas conselheiras da clínica de aborto. Eu caí neste mundo perfeito que me satisfaz, de muitas formas diferentes.

Descobri que estava grávida em novembro. Eu estava trabalhando na clínica há cerca de um ano. Foi a minha primeira gravidez e, para ser sincera, eu não estava usando nenhum tipo de método contraceptivo, o que é uma loucura, eu sei. Sou uma educadora do sexo e adoro falar sobre controle de natalidade. Antes desta experiência, o métodos contraceptivos hormonais me assustavam por causa das complicações que tinha ouvido falar de amigas — ganho de peso, depressão, etc. Então, eu monitorava meu ciclo de ovulação e, como não tive nenhum parceiro de longo prazo, pensei que estava tudo bem. Mas, você sabe, essas coisas acontecem. Acabei grávida.

Quando se trabalha numa clínica de aborto, você sempre acha que está grávida. Depois de passar o dia ouvindo histórias de mulheres que não sabiam que estavam grávidas até completarem 20 semanas ou que continuavam menstruando normalmente, eu fazia testes de gravidez o tempo todo.

Por um capricho, fiz um teste e nele apareceram as duas linhas cor de rosa. O momento em que uma mulher olha para baixo e vê essas duas linhas cor de rosa, sem estar querendo vê-las, é como se o tempo implodisse e explodisse simultaneamente. Você está presa num tornado que apenas suga todo o ar de seus pulmões.

Após recobrar a respiração, eu sabia imediatamente que ia fazer um aborto. Eu sabia que não estava pronta para cuidar de uma criança. O cara não estava envolvido na minha decisão. Liguei para meu supervisor e disse: “Desculpe, eu vou precisar agendar um aborto, por favor”. A gravidez estava bem no início, apenas duas a três semanas.

Pacientes da clínica sempre me perguntam se consigo me identificar com elas: já fez um aborto? Tem filhos? Eu estava tão acostumada a dizer: “Eu nunca fiz um aborto, mas …”. Enquanto estava grávida e esperando meu procedimento, pensei: “Espere um minuto, eu tenho que usar isso”.

Primeiramente, pensei em escrever um blog. Então, meu gerente me apresentou a uma mulher no YouTube que atende pelo nome de Angie AntiTheist. Ela se filmou durante seu aborto médico — após tomar a pílula RU486 — para mostrar a todos que estava bem, que não é assustador, não machuca e que ela estava confiante em sua decisão de fazê-lo.

Houve, é claro, uma enorme reação por parte de pessoas contra o aborto. Ela recebeu ameaças de morte e todo esse tipo de coisas. Mas o que me inspirou tanto foi ver que ela deu seguimento ao projeto. Após cada ameaça ou comentário ignorante, ela respondia com um novo vídeo em seu canal no YouTube abordando diretamente a mais recente crítica. Ela não se escondeu. Eu amei isso.

Procurei na internet e não consegui encontrar um vídeo com um procedimento cirúrgico real que foque na experiência da mulher. Nós falamos tanto sobre aborto, mas as pessoas dificilmente sabem com o que ele realmente se parece. Um aborto realizado no primeiro trimestre de uma gravidez leva de três a cinco minutos. É mais seguro do que um parto. Não há cortes e o risco de esterilidade é inferior a 1%. No entanto, as mulheres que vêm a clínica estão o tempo todo com medo de serem abertas numa cirurgia, convencidas de que serão incapazes de ter filhos após um aborto. A desinformação é incrível, mas pense nisso: elas ainda estão dispostas a enfrentar esses sacrifícios porque elas sabem que não podem ter uma criança neste momento.

três opções para se fazer um aborto no primeiro trimestre de uma gestação: o aborto médico, que é uma pílula; um aborto cirúrgico com sedação IV, onde você está dormindo durante todo o procedimento; e um aborto cirúrgico com anestesia local, durante o qual você está acordada. As mulheres tem mais medo de estarem acordadas.

Eu poderia ter tomado a pílula, mas queria fazer o que as mulheres tem mais medo. Eu queria mostrar que não era assustador — e que não há tal coisa como uma história positiva de aborto. É a minha história.

Todos na clínica apoiaram a filmagem. No início, eles queriam sentar e conversar sobre as consequências reais desse projeto. Há muita política envolvida. Sabíamos que poderíamos ter centenas de manifestantes em nossa porta; poderíamos ter ameaças de bomba. Trabalhar em uma clínica de aborto, de vez em quando, parece que se está trabalhando em uma zona de guerra.

Mas eu disse: “Traga-a”, e eles estavam a bordo.

Eu sabia que as câmeras estavam na sala durante o procedimento, mas esqueci delas quase que imediatamente. Eu estava focada em permanecer positiva e sentindo o amor de todos na sala. Eu sou tão sortuda que conhecia todos os envolvidos, e me senti muito apoiada. Lembro-me de respirar e cantarolar como se eu estivesse no momento de um parto. Eu sei que soa estranho mas, para mim, isso era como o nascimento poderia ser. Será sempre uma lembrança especial para mim. Eu ainda tenho meu ultrassom, e se meu apartamento pegasse fogo seria a primeira coisa que eu pegaria.

A primeira noite que postei o vídeo na minha página do Facebook, eu não conseguia dormir. Saí com amigos e estava muito paranoica pensando nas pessoas me olhando de outra maneira por causa do que viram no vídeo. A intimidade do vídeo me deixou nervosa, mesmo realmente querendo que as pessoas o vissem.

Então, abri meu mural do Facebook. Eu estava esperando um tsunami de ódio, coisas assustadoras, mas todo mundo estava incrivelmente prestando apoio. Pessoas com quem nunca conversei começaram a escrever suas próprias histórias sobre aborto.

Tinha uma mulher que me enviou algumas mensagens dizendo que ela tinha feito um aborto naquela semana e estava atormentada pela culpa. Seu namorado a chamou de assassina, mas ela disse que estava se recuperando bem e que tinha apreciado o vídeo. Outra mulher disse que tinha feito um aborto e que, por causa do meu vídeo, ela sentiu que poderia falar comigo sobre isso. Dessa maneira, todas essas coisas começaram a sair dessas mulheres.

Houve respostas cheias de ódio, é claro, que foram a parte mais difícil de tudo isso. Quando eu publiquei o vídeo no YouTube, manifestantes pró-vida o colocaram em seus noticiários. E então, recebi mensagens como: “Você é uma nazista”, “Você merece morrer”, “Você matou o seu bebê”. Tanto ódio cego sem saber quem eu sou ou o que penso.

Ainda assim, cada vez que assisto o vídeo, o amo. Eu amo como ele é positivo. Eu acho que, em vídeo, não existem muitas histórias positivas de abortos para que todos possam ver. Mas a minha é.

Eu sei que existem mulheres que sentem grande remorso. Eu vi as lágrimas. Angústia é uma parte importante no processo de uma mulher, mas o que eu realmente queria abordar no meu vídeo é a culpa.

Nossa sociedade produz essa culpa. Nós a inalamos de todas as direções. Mesmo as mulheres que vêm à clínica completamente decididas em fazer um aborto dizem que se sentem culpadas por não sentirem culpa. Mesmo tendo 110% de certeza que esta é a melhor decisão, elas pressionam a si mesmas para se sentirem mal com isso.

Eu não me sinto mal. Eu me sinto um pouco irresponsável e envergonhada por não ter usado um método contraceptivo. Quero dizer, Emily, acorda! O que você está fazendo? Eu estava indo contra o conselho que dou para as pacientes o tempo todo. Então, eu coloquei um DIU depois do aborto. Eu fui capaz de aprender e seguir em frente. E sou grata porque posso compartilhar a minha história e inspirar outras mulheres a interromper a culpa.

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