O feminismo brasileiro se espalha e resiste

Texto de Bia Cardoso para as Blogueiras Feministas.

“Companheira, me ajude, que eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor”. Grito coletivo no protesto ‘Mulheres Contra Cunha’ em São Paulo.

Em 2015, as Blogueiras Feministas completaram 5 anos de existência. No início do ano, ao retomarmos as atividades do blog, escolhemos “resistência” como nossa palavra-chave. Foi um ano difícil, mas também um ano em que vimos cada vez mais pessoas falando sobre feminismo, especialmente mulheres jovens, adolescentes e meninas. O feminismo tem se tornado pop, tem sido mastigado pelo capitalismo, cuspido por pessoas equivocadas, tem sido atacado e também abraçado. Fico feliz que esteja sendo assunto, pois mais pessoas podem ouvir sobre o feminismo, pensar, se sentirem instigadas a buscar mais informações.

Sendo um movimento social e político, acredito que o feminismo é construção coletiva, bricolagem, algo que não pode ficar parado, precisa girar constantemente. Por isso, saúdo esses últimos dias em que o feminismo brasileiro esteve tão em evidência com a Campanha Primeiro Assédio, o Enem e as Marchas contra o deputado federal Eduardo Cunha. Resistimos!

Movimento das mulheres contra Cunha nas ruas do Rio de Janeiro. Foto de Domingos Peixoto/Agência O Globo.
Movimento das mulheres contra Cunha nas ruas do Rio de Janeiro. Foto de Domingos Peixoto/Agência O Globo.

Primeiro Assédio: infância e juventude marcadas pela violência contra a mulher

A primeira pergunta que me fiz quando soube dos comentários sexuais a uma participante do programa Masterchef Junior foi: como chegamos num ponto em que homens sexualizam e expressam publicamente sua atração por uma menina de 12 anos, num programa em que o objetivo é avaliar dotes culinários, sem receio algum?

Não acho que a cultura do estupro explique tudo. Há mais. Há nossas relações nas redes sociais, há os limites entre público e privado na internet. Há as regras sociais impostas a homens e mulheres desde a infância. É um conjunto grande de elementos e de ações que levam homens a muitas vezes terem o assédio e a violência como a única forma de resposta. Em vários eventos feministas vi homens se sentirem totalmente à vontade para subirem no palco, pegarem o microfone e defenderem o direito de bater em mulheres. Não há nenhum medo neles ao fazer isso, mesmo estando em frente um grande grupo de mulheres, porque a sociedade permite que ocupem esse espaço.

Como resposta aos comentários abusivos a menina de 12 anos, o Think Olga propôs que as mulheres relatassem seus casos de assédio na infância ou adolescência, usando a hashtag #PrimeiroAssedio. A campanha tomou proporções gigantescas e produziu mais de 100 mil tweets. Grande parte dos homens viu suas timelines de redes sociais virarem grandes murais de relatos e demonstraram não saber que o problema era tão grave e tão próximo, o que só mostra o quanto falamos pouco publicamente sobre o assunto, o quanto somos ensinadas a termos vergonha por sermos violentadas.

É claro que esse tipo de ação em redes sociais tem limitações. Como lembrou Djamila Ribeiro: Para as meninas quilombolas a hashtag não chega. Também houve quem não pudesse relatar nada em redes sociais, pois seus abusadores fazem parte de seus círculos de familiares e amigos. O assédio e a violência são perpassados por questões de raça, etnia, corpo, idade, classe. Não há ação política perfeita e fatalmente estaremos esquecendo ou dando menos atenção a problemas graves enfrentados por mulheres periféricas. Porém, acredito que para o tão combalido feminismo, isso representa uma inspiração. Uma reação espontânea e coletiva de mulheres que não querem mais permanecer caladas, uma abertura para que diferentes mulheres relatem suas diferentes vivências marcadas pela violência do assédio sexual. Mesmo classificada como ação de marketing, as mulheres se apoderam da hashtag e constroem em cima dela.

Também é preciso lembrar que nem todas as mulheres tem uma história de horror para contar. Há mulheres que gostam de gracejos e assobios de estranhos, sentem-se desejadas com o olhar do outro. Porém, é importante repensar tais práticas para nos questionarmos: como tratamos as mulheres na sociedade? E pensar num mundo mais inclusivo e seguro para todas, não apenas para o meu desejo. Acredito que repensar as maneiras como me sinto desejada pelo olhar do outro contribui para uma coletividade maior.

O Enem e as adolescentes feministas

Faz tempo que vemos a movimentação das adolescentes feministas pelas redes sociais. Perfis em redes sociais, páginas no Facebook, grupos de discussão, blogs, tumblrs. Elas estão por todos os lugares. Discutindo geralmente assuntos do cotidiano, questionando o machismo nas famílias e nas escolas.

Também é comum ver críticas a elas dizendo que são pouco politizadas, que se preocupam muito com pormenores como as propagandas de esmalte. Porém, quando você era adolescente preocupava-se com o quê? A construção do feminismo também se dá no questionamento e compartilhamento das vivências, no estabelecimento de laços de amizade com outras mulheres e não apenas na luta por direitos dentro das instituições. Quem não sai para lutar contra leis retrógradas pode estar em outras frentes do feminismo. Num momento em que o gênero está sendo retirado dos planos de educação, em que os Top 10 Vadias demonstram o poder da violência cotidiana nas vidas dessas jovens, são elas quem estão resistindo.

No primeiro dia do Enem, uma questão baseada em citação da filósofa e feminista francesa Simone de Beauvoir. No segundo dia, o tema da redação: “a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Ainda teve poesia sobre resistência negra e a feminista queer mexicana Gloria Evangelina Anzaldúa. A avaliação de 2015 logo ganhou o apelido de Enem Feminista.

Para mim, o Enem está totalmente por dentro do que está rolando entre a juventude. Tenho 34 anos, sou de uma geração que ainda foi ensinada que o assédio as mulheres é algo corriqueiro, que faz parte das nossas vidas. Não fui ensinada a reagir, apenas a ignorar, a correr, a pedir ajuda. O que vejo nas jovens de hoje é que elas querem reagir, não querem ficar caladas e sabem que não encontrarão respostas para seus anseios nas delegacias de polícia.

Então, talvez nesse momento, a conversa não seja especificamente sobre o que eu ou você achamos melhor para o feminismo. Talvez as ações colocadas em práticas por determinados grupos não sejam as que considero mais estratégicas, mas com certeza tem um objetivo para quem as promove. Fora que não acredito na máxima “isso queima o filme do movimento feminista”, porque o movimento feminista já tem seu filme queimado diariamente pelo status quo, por anos e anos de backlash. Um movimento que questiona relações sociais, que quer promover mudanças nunca será visto com bons olhos, não nos cederão espaços de bom grado, mesmo que hoje o palavrão “feminismo” esteja presente até nas bocas das apresentadoras de programas matutinos.

Devemos sempre buscar a inclusão de mais e mais mulheres, lutar contra a invisibilização e o silenciamento. Não há manual, nem cartilha, nem bíblia do feminismo. O meu desejo é deixar a mulherada livre para hackeá-lo, desconstruí-lo, remixá-lo. O que vai sair disso, não sei, mas sigo otimista acreditando que será algo positivo. Por isso, assim como Aline Valek: As adolescentes são minhas novas heroínas.

Mulheres Contra Cunha: pela liberdade de nossos corpos.

No fim de outubro, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, o PL 5069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que dificulta o atendimento a vítimas de violência sexual e prevê penas mais duras para quem induzir ou auxiliar uma gestante a abortar. O próximo passo é ir à votação no plenário.

Esse projeto representa um grande retrocesso nos direitos das mulheres. Atualmente, não é preciso fazer boletim de ocorrência em casos de violência sexual e o atendimento na saúde é obrigatório. Essa medida não aumentou o número de abortos legais no Brasil, mas cada vez mais temos menos centros de referência especializados nesse tipo de atendimento e menos informações.

Primeiro houve uma mobilização nas redes sociais: “Pílula Fica, Cunha sai”, para depois organizarem marchas com milhares de mulheres nas ruas de algumas das principais capitais do país gritando: Mulheres Contra Cunha! As imagens são poderosas e mostram o quanto estamos dispostas a lutar para que nossos direitos não sejam retirados. Quando as mulheres se unem somos ameaçadoras, tanto que violência policial se fez presente nos protestos de Belo Horizonte e na 1° Feira do Livro Feminista e Autônoma de Porto Alegre.

Ainda estamos longe de ter representatividade efetiva no topo das instituições políticas e na mídia, mas ações surgem todos os dias. Durante essa semana, ocorrerá o movimento #AgoraÉQueSãoElas, com mulheres ocupando espaços de colunistas homens. Uma ação pequena, mas que pode representar um momento para refletirmos sobre a baixa presença de mulheres como referência em opinião.

Sim, estou otimista, talvez ingênua. Acredito que num momento tão tenebroso, com redução da maioridade penal sendo aprovada, estatuto do desarmamento sendo modificado, demarcações de terras indígenas ameaçadas, escolas públicas sendo fechadas ou privatizadas e retrocessos nos direitos das mulheres pululando todos os dias, há o mínimo que comemorar para seguir no feminismo. Resistir é preciso!

+ Sobre o assunto:

[+] Retrocessos nos direitos e obscurantismo: quem ganha com a onda ultra-conservadora que ameaça a democracia no Brasil? Por Flávia Biroli.

[+] PL 5069 e a nova ameaça à saúde das mulheres. Por Iara Ávila.

[+] Do #lingerieday ao #AgoraÉQueSãoElas. Por Carol Moreno.

[+] Mulheres nos espaços dos homens: “Protestos e adolescentes feministas”. Por Vanessa Rodrigues.

[+] O gol é masculino. A bola é feminina. E se move. Por Camila Kfouri.