Interseccionalidade: como faz para não reproduzir mais exclusão para quem já está marginalizada?

Texto de Raíssa Éris Grimm.

Interseccionalidade.

Localizar e levar em conta os diferentes recortes de opressão e privilégio que nos situam. É um campo de tensão constante… Por um lado, a gente precisa nomear quem nos oprime. A gente precisa nomear os privilégios que se constroem às custas do que nos violenta. Ao mesmo tempo, saber que esse lugar não é fixo, que a pessoa que nos oprime também pode ser oprimida, inclusive pela nossa própria forma de apontar a opressão dela.

É uma parada na qual eu sou bem ruim. Eu sou branca, de classe média, ao mesmo tempo recortada por uma vivência de travestilidade, desde a qual eu me vejo apontando privilégios relacionados a cisgeneridade de pessoas que não são brancas, nem de classe média.

Falar das opressões que eu vivo, dar visibilidade a elas, não é um exercício teórico, é uma necessidade vital. É vital pra mim apontar e falar do poder que pessoas cisgêneras exercem, enquanto grupo, na minha vida. E implica falar dos privilégios que isso constrói. Ao mesmo tempo, várias vezes, a minha forma de fazer isso pesa junto com os tantos recortes de privilégio e minha luta contra a opressão pode se tornar opressora.

Ilustração da série Mulheres de Carol Rossetti.
Ilustração da série Mulheres de Carol Rossetti.

Ao mesmo tempo, a forma como outras pessoas apontam esses privilégios
muitas vezes também reproduzem transfobia. Também reproduzem o hábito cisgênero por nos roubar a fala, o hábito cisgênero por querer nomear nossas vivências. Hábito cisgênero por nos distorcer, produzir em cima de nós a expulsão dos espaços comuns de convívio e resistência.

E a real é que nisso tudo, são justamente as pessoas mais ferradas as que mais se machucam. Eu não tô isenta de falar merda. Eu não tô isenta de admitir que reproduzi, e reproduzo, muita merda. Eu falei muita coisa pelas quais um dia vou reconhecer que tavam equivocadas e erradas. E vocês também.

Não existe espaço totalmente seguro. Não existe relação totalmente isenta de reproduzir opressões. A gente vai sim ter dias ruins, e aí eu coloco em questão:

Como a gente faz pra segurar e não reproduzir mais exclusão pra cima de quem já tá marginalizada? Pra cima de quem já tem seus espaços de existência reduzida por todas as violências desse sistema?

Todas as perguntas que eu jogo se voltam também pra mim. Pras formas como eu elaboro críticas, Pras formas como eu exponho ou deixo de expor o que alguém me fez.

Não posso me dar ao luxo de pressupor uma história única sobre todo mundo que me machuca. Não posso me dar ao luxo de adotar sempre as mesmas respostas contra toda transfobia — sem levar em conta de quem veio, em que contexto, e qual o peso que minha fala vai ter naquele momento.

Mas eu só peço pra não esquecerem, nem apagarem, que a transfobia é sim uma violência real. E, que a cisgeneridade pode colocar, sim, muitas de vocês num campo de poder que vocês talvez não se imaginem exercendo, que talvez vocês tenham dificuldade de entender como se exerce.

Porque aquilo que não forma parte da vivência de vocês é sim bem difícil de entender. Assim como muitas das opressões que eu exerço me escapam. Assim como esse mesmo texto talvez esteja reproduzindo muito disso, sem que eu perceba. A gente não vai ter solução pra tudo, todos os dias. Ninguém tem todas as respostas. Só as tentativas mesmo.

Autora

Raissa Éris Grimm é graduada em Gêmeos, com mestrado em Aquário, doutoranda em Peixes, pelo Programa de Sobrevivência ao Saturno em Escorpião. Lésbixa trrransmutante, pornoterrorista em potencial. Aprendiz de dançarina e massoterapia na escola da auto-gestão. Publicado originalmente em seu perfil do Facebook no dia 02/11/2016.