Texto de Camilla de Magalhães Gomes.
Diariamente, você lê por aqui textos diversos, com temas diversos, de feministas diversas. Cada um com a intenção de enfrentar os vários desafios do feminismo.
Você pode ter a impressão de que, por vezes, tentamos promover a desconstrução de alguns conceitos. Não é impressão, feminismo serve mesmo a esse propósito. Tudo isso por uma razão muito simples: o gênero é uma construção cultural. E, se tudo o que dissemos até hoje, depois de tantos textos, ainda não te convenceu, talvez algumas referências científicas o façam (ah claro, tenho que dizer que me incluo na categoria das feministas de academia. Acontece…) Assim, tudo o que aqui defendemos não foi “tirado de trás da orelha”, como diríamos lá nas Minas Gerais.
Hoje escolhi Anthony Giddens. O sociólogo propõe a análise da diferença entre SEXO E GÊNERO. Segundo indica, na sociologia, sexo serviria a definir as diferenças: “anatômicas e fisiológicas que definem os corpos masculino e feminino”. Diferente disso, o gênero: “diz respeito as diferenças psicológicas, sociais e culturais entre homens e mulheres. O gênero está ligado a noções socialmente construídas de masculinidade e feminilidade”. E, talvez ainda mais importante: “não é necessariamente um produto direto do sexo biológico de um individuo”.
A afirmação de Giddens nos ajuda na percepção do grande espaço existente entre essas duas categorias e, ainda, como igualar um ao outro pode representar um grande equívoco. A distância e a diferença entre sexo e gênero são o resultado da distância e da diferença entre natural e cultural. Não vou comentar aqui as teorias sociológicas que acreditam que até mesmo o sexo é uma construção social. Vamos ficar com o mais simples.
Retomando, o gênero é socialmente construído. Ou, como melhor comenta o Giddens, há uma socialização do gênero e, as diferenças que dela surgem, são, de fato, culturalmente produzidas. Se há desigualdades entre homens e mulheres é porque “homens e mulheres são socializados em papéis diferentes. Estudos mostram que, em certa medida, as identidades de gênero são resultados de influências sociais”. As diferentes chances que homens e mulheres possuem, hoje, são resultado de uma sociedade estruturada a partir dessas manifestações culturais acima referidas.
É nesse momento que surge alguém para dizer: “mas sempre foi assim”. Deixando de lado a ingenuidade do “sempre” na fala do incauto, não é bem assim. Não sou nada ligada a questões religiosas, mas o texto ‘Interpretação feminista do relato da criação’ apresenta uma análise do “quão profundas são as raízes da dominação das mulheres”, a partir da apreciação de episódios da história cristã.
Teólogas feministas — e vou te contar, essa expressão me deixa com um sorriso no rosto, porque funciona como uma tapa na cara daqueles que vivem a pensar serem as feministas pessoas cruéis, sem coração, comedoras de criancinhas e destruidoras de homens — fizeram um estudo a respeito de Eva e do pecado original. A interpretação levada a efeito na Bíblia seria responsável por difundir o preconceito contra a mulher, a tal construção cultural de que falei antes. O episódio, como até hoje relatado, serviria a reforçar a superioridade masculina e a identificar a mulher como o ser frágil, viciado, indigno de confiança e responsável pela condenação de todo ser humano. Porém, é aí que o trabalho dessas teólogas entra em cena. Segundo o artigo, Riane Eisler e Françoise Gange apresentam uma leitura diferente e feminista.
“Estas autoras partem do dado histórico de que houve uma era matriarcal anterior à patriarcal. Segundo elas, o relato do pecado original seria introduzido no interesse do patriarcado como uma peça de culpabilização das mulheres para arrebatar-lhes o poder e consolidar o domínio do homem. Os ritos e os símbolos sagrados do matriarcado teriam sido diabolizados e retroprojetados às origens na forma de um relato primordial, com a intenção de apagar totalmente os traços do relato feminino anterior. O atual relato do pecado original coloca em xeque os quatro símbolos fundamentais do matriarcado”.
Uma cultura diferente da que conhecemos hoje, matriarcal, que reconhecia a sexualidade como algo sagrado — e não o incorreto sentido de sagrado como intocável, mas sagrado por representar “acesso ao êxtase e ao conhecimento místico, representada pela relação homem-mulher” — substituída por essa que hoje conhecemos, patriarcal e machista.
A mulher, de sexo sagrado, passa a figura sedutora, através de uma “desconstrução profunda do relato anterior, feminino e sacral. Hoje todos somos, bem ou mal, reféns do relato adâmico, antifeminista e culpabilizador como está no Gênesis”.
E por que usar, nesse texto, das referências de Giddens e de um texto que trata da história da religião cristã, ao mesmo tempo? Os motivos são simples: em primeiro lugar, as raízes da discriminação feminina são tão profundas, como dito, que podem fazer parecer, realmente, que “sempre foi assim”. As diferenças de gênero foram forjadas ao longo de muitos séculos e, talvez por isso, tenham, para muitos, um sentido natural. Segundo, porque se houve uma desconstrução para traçar essa sociedade discriminatória em que agora nos inserimos, uma nova desconstrução — igualitária e feminista — apresenta-se necessária. Uma mudança de mentalidades, uma nova construção. Cultural que seja — e será, como toda produção humana — mas que reconheça os erros produzidos nessa, digamos, primeira desconstrução.
A intenção desse texto era somente essa. Um pequeno passeio por referências científicas, históricas e mesmo religiosas, como que para reforçar, com argumentos de natureza diferente, aquilo que repetimos todos os dias por aqui: FEMINISMO É A IDEIA RADICAL DE QUE MULHERES SÃO GENTE.