Assédio sexual: violência de gênero e relações de poder

Estamos no meio da campanha 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher.

O tema que vou abordar hoje é assédio sexual e moral, especialmente nos aspectos jurídicos. Apesar de teoricamente o crime poder ser praticado tanto por homens quanto por mulheres, e de existirem notícias de assédio de mulheres para com os subordinados, a grande maioria dos cargos de chefia ainda é ocupada por homens, e a grande maioria das vítimas de assédio ainda são mulheres.

Em Terra Fria (North Country), Charlize Theron dá vida à personagem Josey, uma mulher que depois de abandonar o marido, que a agride, volta a viver com os pais. Para receber um salário melhor que o de cabeleireira, na cidade onde tudo gira em torno da mineração, ela decide trabalhar também nas minas, e sofre, juntamente com as outras mulheres, o assédio moral e sexual dos colegas de trabalho e mesmo dos conterrâneos.

Uma crítica, escrita por Celso Sabadin, diz:

Já vi este filme antes”. A velha expressão cabe como uma luva para o drama Terra Fria. Não que o filme seja ruim, mas ele é muito, muito parecido com várias outras produções anteriores do mesmo gênero, de Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento a Norma Rae, passando por Silkwood – O Retrato de uma Coragem e tantos outros. O tema é um dos favoritos do cinema americano: o cidadão comum (no caso, cidadã) que recorre à Justiça para vencer os poderosos. E vence, é claro. Faz parte do imaginário da terra de Bush acreditar na infalível justiça dos homens, por mais insignificante que seja o indivíduo preso nas engrenagens do poder.

Já a crítica de Lola Aronovich fala:

Terra Fria é feminista por denunciar toda uma estrutura criada e usada para subjugar o sexo feminino (o que a gente chama de patriarcado — e o filme é muito didático nisso: não é só um grupinho de homens, mas a conivência de toda uma cidade, de todo um mundo, que insiste em manter as coisas “como elas são”), por tratar do tema das mulheres em empregos “masculinos”, por não cair nos clichês (a protagonista não precisa encontrar o amor de um homem para crescer), e por mostrar a jornada de uma guerreira que decide combater a vida que seu gênero quis lhe impor. Graças a ela, foram implantadas regras que proíbem o assédio sexual -– para desespero de alguns marmanjos que lamentam que o “politicamente correto” esteja cerceando seu direito de humilhar e ofender. Tadinhos. Eles só querem que tenhamos senso de humor…

Cena do Filme Terra Fria (2005)

Achei interessante frisar tais distinções no entendimento do que é o filme, pois o crítico, assim como o juiz ou outra profissão que se pretenda “imparcial”, pode até ser imparcial, mas dificilmente será “neutro”. A neutralidade seria uma contradição, pois todos estamos inseridos em uma comunidade, em uma sociedade, e de forma mais ou menos consciente, reproduzimos os conceitos e pré-conceitos desta comunidade.

Afinal, o que é “assédio sexual”?

Assédio sexual é toda tentativa, por parte do superior hierárquico (chefe), ou de quem detenha poder hierárquico sobre o subordinado, de obter dele favores sexuais por meio de condutas reprováveis, indesejáveis e rejeitáveis, com o uso do poder que detém, como forma de ameaça e condição de continuidade no emprego. Pode ser definido, também, como quaisquer outras manifestações agressivas de índole sexual com o intuito de prejudicar a atividade laboral da vítima, por parte de qualquer pessoa que faça parte do quadro funcional, independentemente do uso do poder hierárquico. Cartilha do Ministério da Saúde – 2008 (.pdf)

Para se caracterizar o assédio sexual, são necessários alguns requisitos, que são “elementares do tipo penal”. Pensemos no crime como um quebra-cabeça, que só se completa com todas as peças. As peças, as vezes minúsculas e difíceis de encaixar, chamamos “elementar” do tipo — sendo “tipo” um dos três elementos básicos do que comumente se chama “crime”. O tipo penal é a descrição da conduta, da ação. Para se configurar um crime é preciso que inocorram as excludentes de ilicitude, legítima defesa, por exemplo. E que estejam presentes as condições de culpabilidade — pessoa maior, capaz de entender o caráter ilícito/ilegal da conduta e capaz de agir de acordo. Complicado, mas tem que ser, porque senão TUDO seria crime. E, na verdade, há um princípio de que o Direito Penal é a ultima ratio, ou seja, a última opção — ao contrário do que a mídia em geral prega, de criminalizar toda e qualquer conduta.

Quais são as “elementares” do CRIME de assédio sexual?

Caracterizam o assédio sexual três pontos principais:

1) constrangimento ilícito, como compelir algo contra a vontade da vítima;

2) finalidade especial, qual seja, favorecimento sexual;

3) abuso de uma posição de superioridade laboral.

Sim, para caracterizar o crime é preciso que o assediador seja superior hierárquico. Então, entre professor e aluno, por exemplo, não havendo superioridade hierárquica laboral, decorrente de vínculo de trabalho, não cabe a caracterização do crime. Cabem outros crimes? Com certeza, mas não o previsto no artigo 216-A do Código Penal.

Ritinha - Juliana Paes e o fetiche da "doméstica" - Novela Laços de Família (2000) - Rede Globo

Todavia, calma! A seara criminal não é a única opção, pelo contrário, deveria ser a última em alguns casos. Então, caberá sim, a proteção do direito administrativo e trabalhista nas relações de trabalho e, o direito civil amparando com indenizações as vítimas de assédio moral e sexual. Infelizmente, nossa tradição nos casos de indenização ainda são de indenizações compensatórias. Wilson de Melo da Silva escreveu:

se o dinheiro não paga diretamente o preço da dor, pode, no entanto, indiretamente, contribuir para aplacá-la, o que é outra coisa” , e não de indenizações punitivas, deixando o direito pátrio todo o aspecto punitivo para o direito Penal.

Assédio Sexual e a Mídia

A lei que introduziu no país o crime de assédio sexual é de 2001. No entando, o conceito de assédio sexual é tão antigo quanto a “civilização” brasileira. Em uma reportagem de 1995, a revista “Veja” publicou uma citação de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala:

“Nenhuma casa-grande do tempo da escravidão quis para si a glória de conservar filhos maricas ou donzelões. O que sempre se apreciou foi o menino que cedo estivesse metido com raparigas. Raparigueiro, como ainda se diz. Femeeiro. Deflorador de mocinhas. E que não tardasse em emprenhar negras, aumentando o rebanho e capital paternos.”

Em uma crônica que gerou muita polêmica na rede, em 2008, o colunista da Trip escreveu a “Carta aberta para Luísa”, que relata um fato ocorrido na sua adolescência, em que ele e um amigo teriam estuprado a empregada da casa. Depois da polêmica, foi publicado um pedido de desculpas e uma negativa da realidade do fato. Tudo seria uma obra de ficção. Ficção ou não, o fato é que empregadas domésticas, um nicho trabalhista que carrega tantas conotações de subalternidade e paternalismo, ocupado majoritariamente por mulheres, em sua maioria negras, a figura do assédio ainda é comum e não denunciado.

Em 2010, uma empregadora foi condenada a pagar a indenização pelo assédio sexual praticado pelo marido, contra a empregada doméstica. A notícia foi comentada num portal jurídico, observem a ressalva quanto ao “enriquecimento com indenizações excessivas”:

A quantificação do dano moral, por sua vez, é assunto complexo por não haver valor legal fixado e, assim, depender da análise de variáveis como grau de culpa e poder econômico do ofensor, bem com, extensão do dano e sua repercussão social. Esse sistema aberto para aferição do valor considera o caso concreto, abastecido com todas as nuances humanas que o dano moral, especialmente, carrega. Portanto, obriga o magistrado a exercitar um olhar específico que, ao mesmo tempo em que deverá reparar o direito lesionado da vítima, não deverá fomentar riqueza ilícita com indenizações excessivas.

Trabalhadora doméstica - denúncias de assédio ainda são poucas. Cena do Filme Domésticas (2001)

No fim de 2010, foi publicada uma portaria interministerial, entre o Ministério da Justiça e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. (SEDH/MJ nº 2, de 15 de dezembro 2010). Em tal ato normativo, com valor imediato para os órgãos subordinados aos ministérios elaboradores, se busca estabelecer Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública. No caso, apenas as Polícias Federal e Rodoviária Federal estão diretamente subordinadas. Polícias Civil e Militar são subordinadas aos Estados, e GMC subordinadas aos Municípios, logo, é preciso que uma norma estadual e/ou municipal regulamente tais diretrizes.

Uma das diretrizes estipuladas é a 33, que diz:

Combater o assédio sexual e moral nas instituições, veiculando campanhas internas de educação e garantindo canais para o recebimento e apuração de denúncias.

Pesquisas norteamericanas recentes demonstram que 1 em cada 4 mulheres já sofreu assédio sexual no trabalho. Não encontrei dados sobre pesquisas nacionais. O que posso dizer é que acredito que nesses casos, como em vários outros casos, quase toda mulher tem uma história de horror para contar. Não sou exceção, como já contei aqui.

Eu, nesse aspecto do assédio sexual no trabalho, reconheço meu privilégio: trabalhava em comércio familiar, o que não impedia cantadas de clientes, constragimentos e tal, mas não o risco de ser demitida. Estagiei por contrato com o Tribunal de Justiça e só trabalhei com juízas. Quando fui aprovada em concurso público, entrei com 29 anos e na posição de superior hierarquico. Não sofri assédio sexual. Porém, dou aulas para policiais. Quando discutimos essa diretriz, que ainda não foi implantada em Minas Gerais, descubro que muitas das policiais já passaram por isso e, que quase todos os homens conhecem alguma colega que já sofreu assédio. Felizmente, cada dia mais há denúncias, recebidas com certo respaldo (constatação empírica, posso estar muitíssimo enganada!)

Ainda há a violência moral, aquela que é mais ou menos sutil e, que coloca a carga da culpa sobre a vítima. Muitas pessoas acham que a ascenção feminina no mercado de trabalho é fruto dos famosos “testes do sofá”. Não basta se mulher e competente, a competência passa pelo uso do poder sexual.

Até quando?

Imagino que este tema tenha o mesmo tipo de conotação, para alguns e algumas, da polêmica “cantada”.

Não tem. Cantadas, flertes, paqueras, são coisas naturais quando acontecem naturalmente. Quando há abertura de ambos os lados. Em um ambiente de trabalho, pessoas se relacionam e relacionamentos podem evoluir para o contato físico, óbvio. Para mim, a distinção entre a paquera e o assédio é algo bem básico: reciprocidade. Será que é tão dificíl assim perceber?

Diante de uma cultura que diz que o “NÃO” de uma mulher é sempre um “SIM”, ou no máximo um “TALVEZ”, creio que ainda é difícil. Por isso, ao contrário do que o crítico de cinema Celso afirmou, de que o filme já foi visto muitas vezes, de que a história já foi muito contada, eu digo: ainda há muito a ser debatido.

[+] Cartilha sobre Assédio Sexual do SINASEFE (.pdf) – Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica