Já tomou Tarado? Ou… fermentando a mercantilização dos corpos das mulheres

Há 10 mil anos, no Oriente Médio, a humanidade plantava e colhia grãos. Surgiu nesta época o costume de fervê-los. O processo de fermentação de grãos deu origem a bebidas. Esta é a ancestralidade da cerveja. A produção da cerveja teve influência no processo de civilização. Um velho poema oral da Babilônia, denominado Épico de Gilgamesh (contado pela primeira vez há 4 mil anos) fala do herói Enkidu – um selvagem que aprendeu a comer pão e beber cerveja. Enkidu bebeu sete canecas de cerveja e seu “coração se elevou”. Segundo a lenda, ele se lavou e se tornou um “homem refinado” – a cerveja o tinha “domado”.

Capa de um livro com propagandas antigas da cerveja budweiser. Fonte: Amazon.

Estudos indicam que pelo menos 3 mil anos antes da era Cristã, a cerva já era bastante consumida. Era uma bebida inebriante, feita com os grãos que nutriam o povo do Egito. Em muitos povos, a cerveja era como pão, um alimento sagrado e imprescindível. Em algumas culturas era ritualizada e sua produção servia a fins religiosos. Como líquido fervido, era mais segura que a água e fornecia calorias rapidamente. Com o passar dos anos, muito aconteceu no ato de acumular e liberar a magia da levedura , que converte o açúcar em álcool. A cerveja é componente vital da experiência adulta, a grande bebida das massas.

E, nos primórdios dos anos 2.000 depois de Cristo, dois amigos discutem o futuro da sua marca de cerveja:

A – Química ! Por isso que cerveja combina com sexualidade.

B – Sei lá. Eu prefiro pensar no Busch, aquele batuta. Ele que, fez a Budweiser bombar…

A – É mesmo ! Ele teve a genial idéia de colocar mulher na propaganda de cerveja… a melhor bebida do mundo.

B – As vezes, eu até fico na dúvida se estão vendendo as moças ou as cervejas… eu fico doido, tarado!

A – Tai um bom nome para nossa cerva: tarado ! Já tomou Tarado ? Qual vai ser o tarado que você quer hoje ? O Loiro, ou o bem loiro ? O ruivo, ou o negro – ah, o negro este a gente reconhece pelo corpo. Todo mundo quer um tarado, não ?

B – Hum… acho que as mulheres podem estranhar.. E sei lá todo homem é tarado, neh?

A – Mas como assim, as mulheres não vão gostar do nome tarado? Cê num viu? Aquele cara, a personalidade mais popular do twitter, segundo o New York Times, diz que mulher feia merece ser estuprada, tudo que mulher quer mesmo é um tarado!

B – Qual?

A – O tal lá, que apresenta um programa bacana sobre lutas sociais… e outros com uns amigos que é tipo meio humor, meio jornalismo…

B – Uai, e ele fala que mulher merece um tarado e apresenta programa sobre lutas sociais? E ninguém acha estranho?

A – Como assim estranho? Ele fala isso, mas tá longe de ser reaça. O cara é bacana e forma opinião. Muita gente acha graça dele, viu?

B – Sendo assim… TARADO!

Propaganda de cerveja dos anos 20. Ilustração do italiano Leonetto Cappiello.

A – A gente sabe que a maioria dos homens é um potencial Tarado. Seria uma bebida pra despertar a potência…

B – Cara, as mulheres tem grande poder aquisitivo.

A – Mas, vejamos… cerveja é bebida de macho!

B – Isso é, neh? Taí a cultura norte americana… boa!

A – Vender mulher é diferente de vender para as mulheres. Vender macho, pra quê? É melhor vender para o macho

B – É… o negócio é vender mulher… é batuta, rola uma balança comercial favorável.

A – Mulher, bicho… na boa, mulher foi feita pra certas coisas , neh?

B – E mulher que bebe ? Ah… essa ai… fica se abrindo muito…. Melhor vender, né ? Isso dá grana, explorar essas modernas e tals…

A – E mulher tarada? Essa eu quero! Essa eu compro! Essa eu bebo!

B – Taí.. que tal Safada? Pensa no slogan: pegou sua safada hoje?!

A – E vamos vende-la para aquela grande fábrica de cerveja que tá quase falindo…

B – Isso! E vamo entrar pesado… com umas gatas nas propagandas, dando grana pros comerciantes e vendendo as safadas por um preço bem mais barato.

A – Ah, quem num vai comprar ? Vamo dar mais grana ainda pros bares que só venderem as safadas!

B – Fechou… Safada… acho que fica tranqüilo da gente puxar esse lance da liberdade, de comprar e vender, de se soltar…

A – Tava aqui pensando Tarado da medo. Bem melhor, safada, neh?

B – É! Safada é mais bacana, mais a ver com o público-alvo. Melhor ainda se refinássemos a palavra… hum, que tal Devassa?

A – Devassa !

* * *

Esse texto é só um desabafo. Há meses decidi parar de vender Devassa no meu bar e também não bebo. Adoro cerveja, a mesa do bar, a coletividade e a liberdade… são culturas desta bebida. Mas, fico bêbada com o machismo. Principalmente, o do marketing das cervejas. E preciso botar pra fora, pra aliviar a ressaca.

Mas a aceitação, por parte da sociedade brasileira, do machismo descarado da Devassa é, sim, um problema, e deve ser encarado de maneira mais séria por parte dos ativistas (muitos dos quais não se preocupam em denunciar nenhum tipo de machismo, nem o velado, nem o descarado). Continue lendo em A cerveja Devassa e a questão da mercantilização do corpo feminino.

Esse texto é um desabafo. Há meses decidi parar de vender Devassa no meu bar e também não bebo. Adoro cerveja, a mesa do bar, a coletividade e a liberdade… são culturas desta bebida. Mas, fico bêbada com o machismo. Principalmente, o do marketing das cervejas. E preciso botar para fora, para aliviar a ressaca. Penso em criar uma cerva que não venda mulheres, nem delimite e determine seus comportamentos, corpos, subjetividade, sexualidade e prazeres.E que não confunda o produto com as pessoas – estas não estão a venda. Fico encucada … o trabalho d@ cervejeir@ é de uma mestria tão sutil… por que vulgarizar? Sem falar na heteronormatividade destas propagandas.

Há tempos comuniquei que meu bar não venderia mais Devassa aos interessados. O fornecedor veio pra cima. Disse que eu não entendia de cerveja, que a cerveja era muito boa. Então questionei o motivo de explorar os corpos das mulheres pra vender o produto, já que ele é tão bom. E quando falei da Devassa Negra – cujo o slogan é “a negra a gente conhece pelo corpo..” (racista), ele disse que era pelo fato da cerveja negra ser encorpada. Dai já teve dono de bar me ligando perguntando do ocorrido, dizendo que sou louca, que a cerveja é mais barata e tem um ótimo marketing. Eu, que já tenho que conviver com a misógina diariamente, mantive minha posição. Ainda que lucre menos. Além de não bebermos, é importante não vendermos. E continuo tomando cerveja e me divertindo. Esta sim uma ação revolucionária: sobreviver ao machismo.

*Imagem de destaque: anúncios antigos de cervejas.

Autora

Ju Pagul é bastante ingrata com o patriarcado, maníaca diversiva incurável e feminista graças às deusas.