Em março deste ano, a romancista gráfica iraniana Marjane Satrapi deu uma entrevista a Françoise Mouly, diretora de arte do The New Yorker. Por uma dessas coincidências da vida, a entrevistadora também é mulher do artista Art Spiegelman, criador do icônico Maus. Isso porque o sueco foi mencionado na entrevista como principal influência da iraniana, que só teria tido vontade de fazer quadrinhos aos vinte e quatro anos, quando leu o romance gráfico do moço pela primeira vez. Satrapi admite que, até aquele momento, sua visão sobre os quadrinhos era como a do senso comum, ou seja, a de uma arte popular direcionada a crianças e adolescentes.
A coincidência da entrevista não foi tão eventual assim. Na verdade, Satrapi conhece Spiegelman desde que resolveu telefoná-lo para pedir desculpas. O motivo do perdão? As constantes comparações de sua obra com a dele. Fez a ligação para negar seu envolvimento com os comentários do tipo divulgados pela mídia. Segundo ela, ser igualado a novos romancistas gráficos devia ser cansativo e irritante para o velho quadrinista. Por isso, era preciso fazer algo a respeito. Resumo da ópera: o artista achou sua postura encantadora e a convidou para conhecer sua família.

Antes de conhecer os parentes de Spiegelman, Satrapi teve uma espécie de epifania a partir de Maus. Surgiram as bases para Persépolis, seu primeiro romance gráfico. Era a mais pura vontade de se expressar. Quando se deparou com os registros do sueco sobre as façanhas do pai para sobreviver ao Holocausto, percebeu que precisava fazer algo parecido com sua história. Como era graduada e mestra em Comunicação Visual, já tinha meio caminho andado. Com sua experiência de mulher criada no Irã, não faltava inspiração. Daí emergiram os belos quadrinhos sobre as repressões e as alegrias de uma menina que, aos dez anos, foi obrigada a usar o véu islâmico.
Marjane nasceu em 1969, em Rasht, mas passou sua infância em Teerã. Seu trisavô materno foi xá (“rei”, em persa) até 1925. Por conta de sua história familiar, a artista cresceu escutando sobre a resistência contra a invasão arábe, que estabeleceu a religião islâmica na Pérsia. Não é de se admirar que, anos mais tarde, os pais da moça estariam ligados a ideais de esquerda. Assim, Satrapi cresceu com uma educação “esquerdista”, o que entrava em conflito com o Irã dos anos 70. Embora o regime imperial fosse mais flexível em relação à influência do Corão sobre a educação e a justiça, não havia liberdade política. A oposição ao xá era perseguida, o que envolvia prisões ilegais e torturas. Nesse contexto, os grupos de esquerda se aproximaram dos xiitas. O que inclui, claro, os pais de Marjane.
Com a crise econômica do fim dos anos 70, a população começou a se revoltar contra o xá. Este, atônito e incapaz, logo fugiu do Irã. Pouco depois, um dos líderes xiitas, Ruhollah Khomeini, voltou do exílio e foi aclamado por todos. Logo, transformou o Irã em uma república islâmica governada por sacerdotes xiitas. Os ideais esquerdistas que auxiliaram os religiosos na época da revolução passaram a ser condenados. Os pais de Marjane foram perseguidos. Seu tio, executado.
O governo de Khomeini impôs ao povo diversos costumes islâmicos. Para Satrapi, foram muitas as mudanças. Passou a usar véu e a ter aulas apenas com meninas. Além disso, quando Saddan Husseim, ditador do Iraque, invadiu o Irã, a artista presenciou a ida de seus colegas de 13 a 15 anos para a batalha. O conflito da fronteira tornou-se tão grande e os bombardeios tão constantes que a vizinha de Satrapi morreu.
Marjane diz que, após esses eventos, teria cansado de ser passiva. Bateu na diretora da escola, mudou de colégio e confrontava opiniões emitidas por quem quer que fosse. Com as obrigações do regime, também foi obrigada a se posicionar cedo.

Ao contrário do que se pode imaginar, Satrapi cresceu em um meio de fortes relações culturais com o ocidente. No Irã, lia Tintim e Asterix. Em Persépolis, retrata seu encantamento por bandas ocidentais de rock antes mesmo de sua primeira viagem à Europa. Aos treze anos de idade, conseguia fitas de bandas como Camel no mercado negro de seu país. Tudo com muita discrição, afinal de contas, as Guardiãs da Revolução prendiam as mulheres que não se comportavam bem. Note-se que não se comportar bem no Irã islâmico significava também não usar direito o véu ou calçar tênis alternativos.
Com as obras de Satrapi, percebemos que a visão comum sobre o Irã — e principalmente, sobre as mulheres iranianas — é completamente equivocada. Não existem apenas religiosos fundamentalistas no país. Assim como as “descoladas” do ocidente, diversas iranianas conversam abertamente sobre sexo. Muitas mulheres não gostam de usar o véu. Outras preferem, sim, usá-lo. Sobre isso, Marjane diz que, para ela, o véu simboliza a opressão, mas respeita o uso e seus motivos. O problema estaria na impossibilidade de escolha por parte das mulheres.
A artista conta que, em suas aulas práticas de Comunicação Visual, as modelos de anatomia usavam longos véus e os estudantes eram proibidos de observá-las atentamente. Quando a diretoria da faculdade determinou que as alunas deveriam vestir véus mais compridos e calças mais frouxas, Satrapi se opôs, indignada. Achava, acima de tudo, pouco pragmático. Os artistas precisavam de liberdade para se movimentar, o que se tornava difícil com o uso das vestes. Diante da contestação, ao contrário do que todos pensavam, Marjane não foi expulsa. A direção a convidou para desenhar um uniforme feminino que não se opusesse às regras islâmicas. Ela conseguiu, com isso, diminuir o véu e deixar as calças bem largas. “Mesmo sutil, qualquer diferença já representava muito para nós”, disse Satrapi.
Com toda essa jornada da quadrinista, fica evidente que a vida privada das mulheres do Irã é tão viva como a nossa. É isso que Satrapi procura mostrar em Persépolis e, sobretudo, em Bordados, uma breve arte sequencial sobre as iranianas de sua família.
Os registros são dos momentos que ocorrem após as refeições. Quando os homens se recolhem para fazer a sesta, as mulheres lavam a louça e se preparam para a hora delas: a do chamado samovar. O nome indica o recipiente de preparo para o chá que demora quarenta e cinco minutos para ficar pronto. Também se refere ao descarrego de sentimentos, opiniões e experiências de nove iranianas. Delas mesmas e dos outros, afinal de contas. “Falar dos outros pelas costas é ventilar o coração”, já diria a avó de Marjane. Todas sentam, conversam sobre casos engraçados e expõem suas experiências sexuais e amorosas.
Se vocês acham que as iranianas são recatadas e foram educadas para serem “mulheres de homens”, a obra certamente surpreende. Embora muitas acreditem em formas convencionais e religiosas, há várias perspectivas independentes e ousadas. As mulheres de Marjane buscam a emancipação sexual, mesmo que secretamente. Opinam. Falam sobre tradições, traições e meios para serem livres como puderem. Para isso, há muita frustração, sofrimento e… cirurgias. Familiar?

Vocês devem estar se perguntando: por que traduzir por “bordados” algo que é compreendido como “tricô” na nossa língua? Bom, o nome também diz respeito à cirurgia de reconstrução do hímen das mulheres. Para um homem iraniano, casar com uma moça que não é mais virgem é um insulto a sua “masculinidade”. A operação é muito comum justamente porque as mulheres voltam a ser virgens sem maiores problemas para o casamento. Nesse sentido, uma das personagens da obra nos alerta: “No Ocidente, as pessoas da alta sociedade, como os aristocratas, têm o mesmo ponto de vista que nós sobre esse assunto. Para eles, a virgindade é um enorme valor”.
Em 1983, com 14 anos, Marjane foi mandada para Viena pelos pais. Temendo o regime iraniano, ela se manteve na capital durante todo o ensino médio. Morava na casa de amigos, repúblicas estudantis e pensionatos. Nesse período, começou a ter experiências sexuais e lisérgicas até finalmente morar nas ruas. Em condições precárias, contraiu pneumonia, o que a levou de volta ao Irã. Lá, conheceu Reza, com quem se casou aos 21. O casamento durou apenas três anos. Satrapi costuma dizer, inclusive, que seu principal arrependimento na vida foi essa precoce escolha matrimonial.
Depois disso, Marjane Satrapi foi para Paris, onde mora até hoje. Atualmente, escreve e ilustra livros infantis. Também dirige filmes e fez um belíssimo trabalho com Persépolis e com o recente Frango com Ameixas, ambos adaptações de seus romances gráficos.
Satrapi não é apenas uma forte inspiração para as várias quadrinistas espalhadas pelo mundo — e acreditem, são muitas as mulheres nas HQs. É, também, símbolo da luta contra a opressão que sofremos em diversos níveis. Ela lutou e ainda luta muito. Afinal de contas, tem dentro de si as veias de um período dramático de seu país. Entre o ocidente e o oriente, Marjane é acima de tudo mulher.