Sou mãe e apoio a descriminalização do aborto

Texto de Ludmila Pizarro.

Ser mãe é uma felicidade, não é verdade? Com toda certeza, quando é fruto de um desejo e de uma escolha. Autonomia sexual da mulher é um termo historicamente recente. Um século atrás, uma mulher disposta a ter controle de seu aparelho reprodutor seria taxada, no mínimo, de louca. Liberdade sexual era coisa para homens.

Graças aos avanços da medicina e da indústria farmacêutica, vieram a pílula e os demais métodos anticoncepcionais. O controle da natalidade mudou a história do mundo, porque mudou a história da mulher. Esse processo, no entanto, ainda não está concluído. Nós, mulheres, ainda temos diversos grilhões, remanescentes desse passado obscuro, quando éramos reduzidas, muitas vezes, à nossa capacidade reprodutiva.

Uma prova clara disso foram algumas reações à recente decisão do Conselho Federal de Medicina (CFM) de enviar um relatório ao Senado Federal sugerindo uma atualização do atual Código Penal brasileiro (1) no sentido de aumentar o espectro de hipóteses em que o aborto não seria considerado crime (2).

Campanha do Grupo FemMaterna.
Campanha do Grupo FemMaterna.

Uma das porta-vozes do pensamento conservador no Brasil, a jornalista Rachel Sheherazade, vociferou contra a decisão do CFM em um editorial do jornal televisivo SBT Brasil. Chamando de ‘abominável’ e ‘indefensável’ a decisão do Conselho, a jornalista diz: “quando médicos se sentem livres para defender o aborto e juristas nos dizem que o ninho de um pássaro vale mais que uma vida humana, podem apostar: estamos perdidos”. Como se vê, parece que o tempo não passou para a jornalista, que ainda enxerga mulheres como, apenas, receptáculos de onde novas vidas podem surgir, ou ‘ninhos de pássaro’.

Esse tipo de pensamento transforma a maternidade em uma prisão, uma obrigação e uma punição as mulheres que por algum motivo tiveram uma gravidez indesejada. Como mulher que desejou e tornou-se mãe, sou solidária a toda mulher que decidiu não sê-lo, justamente porque sei as consequências que a maternidade traz à vida. E estas só devem ser assumidas por quem assim desejou e escolheu. Porque o corpo é da mulher e a vida também. Só existe autonomia e liberdade onde existe escolha, onde as decisões são tomadas por aquela pessoa que irá arcar com as suas consequências e por mais ninguém (seja sociedade, igreja ou família).

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Para alguns, entretanto, a mulher, garantidora da perpetuação da espécie (como se estivéssemos em extinção) não merece tanta autonomia assim. Para alguns, os processos que ocorrem no útero das mulheres (e ainda dos homens transexuais, na grande maioria das vezes, muito mais violentados pela sociedade que nós, mulheres) é dá conta deles sim.

A essas pessoas, com opiniões das quais eu discordo totalmente, mas representam uma parte da população brasileira, restam ainda os argumentos do Conselho Federal de Medicina sobre o tema. Pois, na verdade, a preocupação do CFM não é com a autonomia da mulher, mas com um direito previsto na Constituição que é o direito à vida. Direito à vida para milhares de mulheres brasileiras, jovens, pobres, com baixa escolaridade, que morrem anualmente em função de abortos inseguros e mal realizados.

Segundo o documento-síntese elaborado pelo grupo de trabalho instituído pelo CFM para análise do tema, que foi distribuído na coletiva de imprensa com o presidente do CFM, Roberto Luiz D’Ávila: “a prática do aborto fora do contexto legal assume caráter de mistanásia (3). Por ano, milhares de mulheres (muitas das quais adolescentes e até mesmo crianças) morrem ou são vítimas de sequelas permanentes em decorrência destes procedimentos”. Na estimativa do Ministério da Saúde, são realizados pelo menos um milhão de abortos no Brasil anualmente.

No documento do CFM, também são apresentados dados de uma pesquisa coordenada pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – Anis e realizada em 2010. Ela demonstra com clareza que a prática do aborto, mesmo ilícita, é bastante comum no Brasil. Em áreas urbanas, uma em cada cinco mulheres entre 18 e 40 anos de idade já realizou pelo menos um aborto, 15% das mulheres em idade reprodutiva.

Com a ilegalidade do procedimento, a maioria deles é feito em situações precárias de higiene, equipe médica ou de medicamentos e acabam lotando os hospitais públicos e causando muitos óbitos. Os abortos mal sucedidos são a 5ª causa de mortalidade materna no Brasil e as complicações do aborto inseguro são a terceira causa de ocupação dos leitos obstétricos no Brasil.

Baseado nesses números o CFM se posicionou no sentido de defender o direito da mulher de realizar um aborto até a 12ª semana de gestação. Defender o direito dessa mulher de viver, independente de suas escolhas. Como foi colocado no documento-síntese citado:

Assim, a exclusão de ilicitudes pela prática do aborto não pode ser tratada de forma maniqueísta, de reserva teológica ou de fé dogmática, de decisões universais ou cartesianas. Pelo contrário, sua análise deve ser conduzida com respeito à bioética e às bases jurídicas e sócio-antropológicas existentes.

Como mãe, referendo a decisão do Conselho Federal de Medicina e convido todas as pessoas, com ou sem filhos, que nunca fariam um aborto ou que não pensaram a respeito, a refletir sobre essa questão, lembrando que a criminalização do aborto, além de diminuir a autonomia da mulher, apenas faz com que mais vidas sejam perdidas, independente de crenças e valores morais.

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1 – De acordo com a legislação vigente hoje no Brasil, o aborto só não é considerado crime nos casos de: gravidez advinda de um estupro e “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”. Uma decisão de abril de 2012, do Supremo Tribunal Federal (STF), ampliou esse quadro considerando legal a hipótese de aborto no caso de fetos anencéfalos.

2 – Dentro da proposta do CFM entrariam no rol de casos em que o aborto não seria crime: a) quando “houver risco à vida ou à saúde da gestante”; b) se a “gravidez resultar de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida”; c) se for “comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestado por dois médicos”; e d) se “por vontade da gestante até a 12º semana de gestação”.

3 – Mistanásia: também chamada de eutanásia social. Leonard Martin sugeriu o termo mistanásia para denominar a morte miserável, fora e antes da hora.  Segundo este autor“dentro da grande categoria de mistanásia quero focalizar três situações: primeiro, a grande massa de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos, não chegam a ser pacientes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento médico; segundo, os doentes que conseguem ser pacientes para, em seguida, se tornar vítimas de erro médico e, terceiro, os pacientes que acabam sendo vítimas de má-prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos”.

[+] Feministas apoiam decisão do CFM pela descriminalização do aborto.

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Ludmila Pizarro é jornalista, apaixonada por livros e mãe da Teresa de quase 4 anos. Escreve no blog Com o pé na estrada.

O FemMaterna é um grupo de discussão sobre maternidade com uma proposta feminista. Se quiser participar, basta pedir solicitação na página do grupo. Participe também no facebook.