O Feminismo e as empregadas domésticas

Texto de Alex Castro.

É impossível estudar o trabalho doméstico remunerado sem considerar também que a grande maioria dessas trabalhadoras são mulheres.

Graças a uma divisão de trabalho doméstica ainda muito machista, a liberação da mulheres latino-americanas de classe média muitas vezes se deu graças a uma maior disponibilidade de mão de obra barata (leia-se mulheres pobres, muitas vezes negras ou, pelo menos, mais escuras) que as substituísse nas tarefas domésticas.

Pode-se dizer que, para as mulheres latino-americanas, em larga medida, a libertação sexual teve soma zero. Algumas tornaram-se mais livres e outras, mais exploradas, e as perdas de umas anularam os ganhos das outras. Nada mudou, especialmente para os homens, que não perderam nada: continuam tendo suas cuecas passadas a ferro e seus bifes fritos no ponto exato, não importando pela mão de quem.

De modo ironicamente perverso, são muitas vezes as mulheres mais liberadas, progressistas e profissionais aquelas que mais precisam ter uma “escravinha” tomando conta da retaguarda doméstica para que possam invadir a esfera pública, tradicionalmente masculina, e lutar o bom combate. Como diria Roberto DaMatta (pobre DaMatta, cada vez mais reaça depois de velho), elas só podem sair à rua quando arranjam quem tome conta da casa.

Não existe como nós, feministas latino-americanas, resolver esse problema só entre as mulheres: como em muitas questões, é preciso também envolver os homens – um tema sempre polêmico.

Mas, sem reeducar os homens, de nada adianta tirar poder de umas mulheres para dá-lo a outras.

Diarista na praia de Copacabana. Foto de Olivia Gay. Uma exposição no Rio de Janeiro vai mostrar através de fotografias o cotidiano de algumas empregadas domésticas que trabalham na cidade. As imagens são de autoria da fotógrafa francesa Olivia Gay, que viveu entre novembro e dezembro de 2012 no Rio de Janeiro.
Diarista na praia de Copacabana. Foto de Olivia Gay. Uma exposição no Rio de Janeiro vai mostrar através de fotografias o cotidiano de algumas empregadas domésticas que trabalham na cidade. As imagens são de autoria da fotógrafa francesa Olivia Gay, que viveu entre novembro e dezembro de 2012 no Rio de Janeiro.

E você, leitora urbana, profissional, antenada, ecológica, consciente, esquerdista, feminista, militante, diga lá com honestidade:

Você também teve que comprar sua independência oferecendo outra mulher em holocausto no altar da sua domesticidade?

Não é um ataque: é um chamado à autocrítica e à reflexão. Uma autocrítica e uma reflexão que todas que cresceram privilegiadas em uma sociedade escravista e desigual precisam fazer em algum momento.

Eu não me excluo disso. O dedo que aponto é em direção, antes de tudo, ao espelho.

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Texto inspirado na leitura do artigo “Feudal Enclaves and Political Reforms: Domestic Workers in Latin America”, de Merike Blofield (Latin American Research Review, vol.44, no.1, 2009), sobre as lutas para a formalização do trabalho doméstico na América Latina e sobre as dificuldades em incluir largos segmentos do movimento feminista hispano-americano nessa batalha. De acordo com dados da autora, o Brasil tinha 5 milhões de trabalhadoras domésticas em 2004.

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Para chamar atenção para o sexismo da nossa língua, o texto acima usa o feminino como gênero neutro.

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Sugestão de leitura: “Homens Invisíveis: Relatos de uma Humilhação Social”, por Fernando Braga da Costa.

Profundo, lindo, fortíssimo. O autor era aluno de pós-graduação de Psicologia e, como parte de um trabalho para a disciplina de Psicologia Social, teve que exercer algum emprego “humilde” – definido como não exigindo qualquer tipo de treino ou experiência. Tornou-se gari da USP e experimentou na pele a humilhação e a invisibilidade.

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Estou escrevendo um romance chamado “Cria da casa: histórias de empregas & escravos”, passado no Rio, em Havana e em Nova Orleans, três cidades que ainda hoje precisam lidar com seu passado escravista e com seu presente machista e racista. Para isso, andei lendo bastante sobre o trabalho doméstico remunerado, no Brasil e no mundo.

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Alex Castro é um homem branco hétero cis (e também feminista, esquerdista, ateu, praticante de bdsm e poliamor), que consciente do lugar de privilégio que ocupa em nossa sociedade racista, machista, homofóbica, transfóbica e elitista, tenta utilizar esses privilégios para melhor pesquisar, refletir e promover pautas como feminismo, lutas sociais, consumismo, movimento negro, narcisismo, escravidão, trabalho doméstico. Site: AlexCastro.com.br e Facebook.