(In)Visibilidades lésbicas e a literatura

Texto de Lettícia Leite.

Laure Murat, no verbete Literatura lésbica”, que compõe o Dicionário de Culturas Gays e Lésbicas (1), indaga:

O que é literatura lésbica? É a literatura que trata de assuntos ligados a lesbianidade, seja ela escrita por homens ou por mulheres, homo ou heterossexuais? É a literatura produzida por lésbicas, mas cujos propósitos não concernem necessariamente à homossexualidade feminina? Ou tal definição restringe-se apenas à literatura produzida por lésbicas, e que ademais evoca a lesbianidade? (p. 295)

1° Semana de Blogagem Coletiva pela Visibilidade Lésbica e Bissexual, organizada pelo site True Love.
1° Semana de Blogagem Coletiva pela Visibilidade Lésbica e Bissexual, organizada pelo site True Love.

Questão que coloco aqui como ponto de partida e reflexão desse texto, cujo objetivo é bastante simples: comentar e dar visibilidade a algumas produções acadêmicas, literárias, e cinematográficas, que tive a oportunidade de (re)ler e ver, entre os anos de 2012 e 2013. Produções, ressalto, que têm como traço comum o fato de terem sido realizadas por mulheres, cujos trabalhos trazem à tona: seja personagens que se relacionam com outra(s) mulher(es) ao longo das narrativas, seja reflexões (acadêmicas) cujo tema central trata de aspectos relacionados a lesbianidade.

Além disso, esclareço que minha escolha aqui recairá apenas sobre produções que foram realizadas no Brasil. Deste modo, ao menos a princípio, creio que o acesso às mesmas torna-se mais fácil, caso este texto tenha o poder de incitar em alguém o interesse por (re)visitá-las.

Nesta data que chama por visibilidade para as lésbicas e bissexuais, a pertinência deste ato de compartilhar alguns de meus encontros, digamos culturais, pareceu-me (ainda mais) manifesta. Sendo que a opção por destacar e tratar a priori apenas acerca da visibilidade lésbica é deliberada, e impulsionada por uma questão de identificação pessoal. Esclareço assim, que o termo “lésbicas” será tratado aqui como uma definição que abrange mulheres que tem em comum o fato de relacionarem-se e/ou desejarem relações sexuais e/ou afetivas apenas com outras mulheres. Considerando-se aqui como “mulheres” quem quer que se identifique como tal.

Este recorte evocou-me de pronto, um texto recentemente publicado aqui: “Intime-se. Publique-se”. Texto que tomava como seu ponto de partida e alarme, a apresentação de alguns dados bastante significativos, apresentados no livro ‘Literatura Brasileira contemporânea: um território contestado‘ (2). Trabalho no qual, entre outras constatações, a autora Regina Dalcastagnè destaca:

cerca de 72,7% dos romances brasileiros contemporâneos publicados por três grandes editoras (Companhia das Letras, Rocco e Record), entre 1990 e 2004, são de autoria de homens, em sua maioria brancos, nos quais a presença de personagens (homens ou mulheres) homossexuais é de apenas 3,9% (sendo que dentre estes, 79,2% são homens).

Dito isto, a pergunta evidente tende a ser: o que estimar então acerca do volume representado pela publicação de livros e outros produtos culturais (cinema, teatro, música, programas de televisão, etc.), cuja autoria seja de mulheres e suas temáticas diversas remetam a questões ligadas a lesbianidade?

Se não tive acesso a estatísticas que respondam a esta questão, no entanto, tenho boas notícias: a primeira editora criada no Brasil por um grupo de lésbicas que se reuniu para publicar livros voltados para o público lésbico, data de 2008. Trata-se da Editora Brejeira Malagueta que, ao que parece, trata-se da única editora L2L (Lesbians To Lesbians) existente hoje na América Latina. Laura Bacellar e Hanna Korich formam a linha de frente desta empreitada editorial. Destaco ainda o fato de que Laura já havia sido pioneira no ramo, uma vez que fora a responsável pela criação das Edições GLS, o primeiro selo brasileiro de livros dedicados às minorias sexuais.

Começo assim este comentário, falando brevemente acerca de dois livros que li recentemente, e que foram publicados pela Malagueta. Trata-se de ‘Frente e verso: visões da lesbianidade’ (3) (que já foi resenhado aqui) e Lésbicas na TV: The L Word’ (4).

‘Frente e verso: visões da lesbianidade’, escrito a três mãos por Lúcia Facco, Laura Bacellar e Hanna Korich (5), trata-se basicamente de uma coletânea de posts que antes haviam sido publicados em dois sites a priori dedicados ao público lésbico (e bissexual): Parada Lésbica e o Dykerama. Não por acaso o próprio título do livro remete ao nome da coluna assinada por Lúcia Facco no site Parada Lésbica. Os textos que compõe Frente e Verso são, portanto, curtos e escritos em linguagem bastante acessível. Os temas abordados são os mais variados: cinema, literatura, música, vestuário, televisão, homofobia, militância, amor, maternidade, publicidade, religião, internet e etc. Enfim, temas que atravessam (ou não), de diferentes formas e medidas, os cotidianos de todas as pessoas, e aqui são tratados por três mulheres lésbicas, de diferentes formações, e que estão dispostas a discuti-los de uma perspectiva em que as mulheres que se relacionam com mulheres aparecem como as protagonistas.

‘Lésbicas na TV: The L Word’, trata-se originalmente de uma dissertação de mestrado, defendida no ano de 2010, por Adriana Agostini (6), no âmbito do programa de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Trabalho que, como seu próprio título indica, traz como objeto de problematização “o primeiro programa na história da televisão a colocar um grupo de lésbicas sob holofotes” (p. 18). Análise que será feita a partir de um recorte que privilegia a trajetória de cinco personagens (7) que permaneceram no decorrer das seis temporadas desta série, que foi ao ar entre os anos de 2004 e 2010.

O trabalho de Adriana tem o mérito de travar um diálogo e fazer um balanço acerca de uma série de debates acadêmicos e militantes travados em torno da temática “homossexualidade feminina” e, sobretudo, dos debates em torno da noção de “identidade(s) lésbica(s)”, mas não só. Adriana problematiza com bastante fôlego as diversas questões colocadas pelas representações da lesbianidade no âmbito das produções audiovisuais, dando destaque ao papel desempenhado pelas comunidades de telespectadoras abrigadas pela Internet. Esta última é interpretada pela autora como espaço privilegiado e diferenciado, a partir do qual as telespectadoras constroem uma via de poderosa intervenção nos rumos da trama.

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A leitura deste último, em especial o balanço da produção acadêmica brasileira dedicada ao estudo da “homossexualidade feminina, entre os anos de 1950 e 2000 (p. 22-23), levou-me a revisitar um livro cuja leitura eu havia realizado há cerca de dez anos atrás. ‘O que é lesbianismo’ de Tania Navarro-Swain, pesquisadora e professora da Universidade de Brasília (8). Livro curto e que no entanto a meu ver, oferece um quadro rico de diferentes questões ligadas às discussões em torno da lesbianidade. Em linhas gerais, este trabalho – que, como informa a autora foi “escrito em menos de um mês, fruto de um imenso cansaço e da impaciência crescente diante do totalitarismo do senso-comum e da arrogância dos paradigmas, dos modelos, das essências” (p. 9) – entende que tratar de “lesbianismo” implica em:

(…) tentar observar como uma certa prática sexual se insere nas relações sociais, como é avaliada, julgada denegrida, louvada ou silenciada no desenrolar da História. É também colocar questões relativas à identidade do humano, à delimitação das pessoas dentro de categorias sexuadas – mulher e homem – que as condicionam e as enquadram em modos de ser, maneiras de sentir, de perceber o mundo e a sua próprias. (p. 11)

Outro bom e impactante encontro recente, foi a leitura do livro ‘Como Esquecer – Anotações quase inglesas’, da escritora e tradutora Myriam Campello (9). Livro que li, motivada pelo impacto causado pelo filme (quase) homônimo ‘Como Esquecer’, dirigido por Malu de Martino (10), lançado em 2010 e vencedor do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade. Emocionou-me imensamente a bela narrativa que conta a história de Júlia, uma professora de Literatura inglesa, com 35 anos, que luta para reconstruir sua vida depois de viver uma intensa e duradoura relação amorosa com Antônia. História (re)construída de forma singularmente forte e delicada, tanto na sua versão livresca, quanto na cinematográfica.

Opto por terminar este post, falando da minha mais recente descoberta literária: a escritora paulistana Odete Rios (1932-2002), mais conhecida pelo nome de Cassandra Rios. Encontro que devo à indicação de Hanna Korich, entusiasta incansável em prol do (re)conhecimento dos trabalhos daquela que, ao seu ver, trata-se da “papisa da literatura lésbica”. Escritora cujas obras foram vítimas de enorme censura. Isto explica, em parte, o fato de que hoje, apenas quatro de seus mais de 35 livros, possam ser encontrados à venda nos sites das grandes livrarias. Os demais títulos podendo ser encontrados apenas em sebos. E é por isto, e não só, que Hanna resolveu produzir o documentário/tributo a Cassandra: “Cassandra Rios: a Safo de Perdizes” (11).

Realizado com apoio do Programa de Ação Cultural 2012 da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, tem lançamento marcado para o dia 31 de agosto, em evento que ocorrerá em São Paulo, na Casa das Rosas, à partir das 16h00, com entrada franca.

Cassandra Rios (divulgação)
Cassandra Rios (divulgação)

Em entrevista ao site Blogay, Hanna Korich comenta sobre o documentário e a produção literária de Cassandra Rios:

Por que a decisão de fazer um filme (e não um livro, por exemplo) sobre a escritora? Qual a linguagem que você usa no filme para descrever Cassandra (depoimentos, imagens de arquivos…)?

Decidi pelo DVD porque, infelizmente, depois de 5 anos trabalhando com Laura Bacellar na Editora Brejeira Malagueta, a única editora lésbica da América Latina, criada em 2008, cheguei à conclusão de que apesar de termos no Brasil 9 milhões de lésbicas, elas compram poucos livros, não se sabe a razão exatamente. Concluí que através de imagens seria mais fácil atingir o meu objetivo de tornar Cassandra Rios conhecida pelas novas gerações, afinal, estamos na era das imagens, certo? Com relação à linguagem, o documentário/tributo tem depoimentos, fotos de arquivos cedidos pela família da autora, imagens de objetos pessoais, capas de seus livros e outras imagens relacionadas ao tema LGBT, além de uma trilha sonora belíssima feita por Laura Finocchiaro.

Quais as inovações da literatura de Cassandra Rios? E quais as inovações de sua literatura como ação afirmativa para as lésbicas e para as feministas?

Olha, Cassandra foi considerada por muitos leitores mais velhos uma referência quando se trata de informações sobre sexualidade. Suas histórias, mesmo nas décadas passadas (40, 50, 60 e 70), quando poucos autores escreviam explicitamente sobre sexo, já aparecia o tema. Foi a primeira autora a retratar as lésbicas nas letras brasileiras, o submundo homossexual em São Paulo e os dramas vividos por quem pertencia às minorias. Foi a primeira também a falar sobre homossexualidade feminina de forma declarada e mostrar a mulher como ser sexual, que sentia tesão, quebrando de maneira espetacular com a tradição vigente, até então de personagens femininas movidas apenas por amor. A ação afirmativa maior de Cassandra, sem dúvida, foi a visibilidade lésbica na vida brasileira, isso desde 1948, com a publicação do seu primeiro livro, que fala e descreve explicitamente o sexo entre mulheres e a relação amorosa entre as mesmas.

Meu encontro ocorreu por meio da leitura do livro ‘Eu sou uma lésbica’ (11). Trabalho publicado como folhetim na revista Status, em 1980, e considerado como o trabalho mais ousado da escritora carioca, que lançou seu primeiro livro com apenas 16 anos, em 1948.

Este livro — ao longo do qual a narradora Flávia se propõe a partilhar suas memórias e (des)aventuras amorosas e sexuais que remontam aos seus primeiros desejos (homo)ssexuais despertados por Dona Kênia — traz uma narrativa carregada de um (homo)erotismo apresentado de forma aberta e repleta de te(n)são, e que lhe conferem força e sedução narrativas raras. Acredito que vale muito a pena conferir! Assim como vale a pena (re)visitar e dar visibilidade às outras tantas realizações e projetos que conferem outras cores às produções culturais que (re)configuram o nosso mundo!

Notas e referências

(1) Tradução livre, de minha autoria e inteira responsabilidade. MURAT, L. Littérature lesbienne. In: ERIBON, D. (dir.), Dictionnaire des cultures Gays et Lesbiennes, Paris : Larousse, 2003, p. 295-297.

(2) DALCASTAGNÈ, R., Literatura brasileira contemporânea : um território contestado. Rio de Janeiro, Vinhedo: Editora da UERJ, Horizonte, 2012. Ver também o artigo: ‘A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004’ (.pdf), In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, 26, Brasília, Julho-dezembro de 2005, p. 13-71.

(3) BACELLAR, L; FACCO, L.; KORICH, H., Frente e Verso: visões da lesbianidade, São Paulo: Editora Malagueta, 2010.

(4) AGOSTIN, A., Lésbicas na TV: The L Word, São Paulo: Editora Malagueta, 2010.

(5) Lúcia Facco é graduada em Letras, especialista e mestre em Literatura Brasileira e doutora em Literatura Comparada pela UERJ, crítica literária e escritora. É autora, entre outros, do livro ‘As heroínas saem do armário: literatura lésbica contemporânea’, São Paulo: Edições GLS, 2004. Trabalho que é resultado de sua dissertação de mestrado defendida em 2003. Laura Bacellar é escritora e editora de livros. É pioneira na difusão de cultura para minorias e desenvolve, entre outros, um trabalho com novos autores através do site Escreva seu livro. Hanna Korich é advogada e graduada em Cominicação Social. Fez parte do Conselho de Atenção à Diversidade Sexual do município de São Paulo e, entre outros trabalhos, é apresentadora, roteirista e produtora do programa As Brejeiras.

(6) Adriana Agostini é graduada em Comunicação Social e em Direito. Atualmente desenvolve uma pesquisa de doutorado em Comunicação Social pela linha “Textualidades Midiáticas”, da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisando imagens da lesbianidade em produções audiovisuais. A dissertação foi defendida sob o título: The L Word – eLas por eLas: e o universo lésbico se apresenta na TV (disponível em .pdf no site da universidade).

(7) As personagens de ‘The L Word” e suas intérpretes: Alice Pieszecki (Leisha Hailey), Bette Porter (Jennifer Beals), Jenny Schecter (Mia Kirshner), Tina Kennard (Laurel Holloman) e Shane McCutcheon (Katherine Moennig).

(8) NAVARRO-SWAIN, T., O que é lesbianismo, São Paulo: Brasiliense, 2000 (Coleção Primeiros Passos). Tania Swain é editora da revista de estudos feministas Labrys, revista digital on line desde 2002.

(9) CAMPELO, M., Como Esquecer – Anotações quase inglesas, Rio de Janeiro: Sete Letras, 2003. Myriam traduziu, entre outros, Cenas Londrinas (coletânea de contos e crônicas de Virgínia Woolf (1882-1941).

(10) Filme cujo elenco é composto por: Ana Paula Arósio (Júlia), Murilo Rosa (Hugo), Natália Lage (Lisa), Arieta Corrêa (Helena), Bianca Comparato (Carmen Lígia), Pierre Baitelli (Nani). Malu de Martino é uma escritora e diretora brasileira, formada em Comunicação Social. O primeiro longa que dirigiu foi “Mulheres do Brasil” (2006), baseado na história de cinco escritoras brasileiras vivendo em diferentes regiões do Brasil.

(11) RIOS, C., Eu sou uma lésbica, Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006.

*Esse texto faz parte da 1ª Semana de Blogagem Coletiva pelo Dia da Visibilidade Lésbica e Bissexual, convocada pelo True Love.