Vivian Maier: a fotógrafa anônima

Texto de Danielle Pereira.

Descobrir esta mulher, esta artista, foi, para mim, um daqueles momentos em que você precisa parar para digerir o que te alimenta. À medida que via suas fotografias e lia sobre sua suposta história, um arrepio insistia em percorrer incessantemente minha espinha. Me vi, por vezes, respirando fundo e olhando para o vazio, tentando assimilar o que me chegava. A identificação com seu trabalho foi imediata. A reverência foi absoluta.

Foto de Vivien Maier.
Foto de Vivian Maier.

Vivian Maier é uma descoberta recente. Anônima em vida, ganhou notoriedade e reconhecimento post-mortem. Morreu há poucos anos, em 2009. E, somente agora sua obra está sendo conhecida e, ainda, avaliada. Por 40 anos ela se sustentou como babá. E, nas horas vagas, perambulava pelas ruas de Chicago (antes Nova Iorque) fotografando pessoas e situações. Pouco se sabe sobre ela. Alguns relatos garantem sua afinidade com o socialismo e o feminismo. Dá para notar! Suas imagens me parecem bem emblemáticas, cheias de simbolismos e insinuações, me trazem inúmeras leituras. Representando e, ao mesmo tempo, renegando alguns dos valores daquela sociedade na qual ela aparentemente se inseria.

Crianças, adultxs, idosxs, negrxs, brancxs, imigrantes, trabalhadorxs, ricxs, pobres, opressor(a), oprimidx. No olhar humanista desta despretensiosa fotógrafa autodidata, a presença de mulheres é constante e diversificada. Por vezes ela parece retratá-las de forma a exaltar sua emancipação ou a denunciar o machismo, o racismo e os conflitos nas relações entre diferentes extratos sociais. As mulheres da alta sociedade, por exemplo, nunca são fotografadas “por completo”; ela mostra apenas um relance ou um detalhe (o rosto, as pernas, algum ornamento indicativo de seu status), deixando claro um distanciamento. Já àquelas marginalizadas costumam aparecer por completo dentro de uma composição que escancara uma crítica ao modus operandi da sociedade.

Foto de Vivien Maier.
Foto de Vivian Maier.

Porém, o que mais me chamou a atenção foram seus autorretratos, que me chegam como uma ilustração do pouco que sabemos sobre ela: fragmentos de uma pessoa. Quase sempre um reflexo da mulher; seja no espelho, seja no vidro (multifacetada!), seja uma silhueta… A sombra da dúvida que paira sobre sua existência. No entanto, é emblemático o uso do autorretrato por ela e por várias fotógrafas feministas como uma forma de representação da mulher, como maneira de se auto-afirmar e reconhecer-se, tendo consciência de seu lugar e de seu protagonismo.

Talvez seja pelo fato de Maier ser uma fotógrafa entusiasta e retratar o cotidiano de uma sociedade da qual se sentia integrante… me surpreendi ao perceber sua relação com os fotografadxs. Ela usava uma Rolleiflex, um tipo de câmera que você segura na altura do abdômen, com duas lentes na frente. Ao contrário das câmeras popularmente conhecidas, que posicionamos no meio da cara, no caso da Rolleiflex, precisamos olhar para baixo. Assim, tenho a sensação de que tanto fotógrafa quanto fotografadxs ficam igualmente expostos e vulneráveis, com seus rostos e olhares à mostra em pé de igualdade.

Foto de Vivien Maier.
Foto de Vivian Maier.

Curioso foi reparar que, no caso de Vivian Maier, suas personagens quase sempre olhavam para a câmera, como se ela fosse o único objeto estranho naquele contexto, capturando a atenção da criadora e da criatura. Isso me trouxe uma sensação de horizontalidade e de quebra desse campo de força que distancia o olhar dx artista. Nada mais propício para embasar a experiência humanista da fotografia documental, retratando a verdadeira natureza das pessoas e situações.

Lamentavelmente (e talvez resida aí o fascínio por seu trabalho), sua trajetória não foge à regra dos típicos casos de artistas que morrem no abandono e na pobreza. Como herança para o mundo, Maier deixou, num guarda-volumes, uma caixa com milhares de negativos arrematados (num golpe de sorte) por um historiador interessado apenas e inicialmente em registros da cidade de Chicago.

O projeto de John Maloof, no entanto, voou pelos ares quando ele percebeu a riqueza dos registros de Maier e passou a divulgar sua obra e a tentar desvendar a artista por traz dela. Para culminar essa busca por valorizar (e rentabilizar) o legado da fotógrafa, Maloof lançou, na semana passada, no Festival de Toronto um documentário sobre a vida de Vivian Maier, chamado: ‘Fiding Vivian Maier’.

 

Num mundo instantâneo e de instantâneos, de Flickrs e Instagrams, uma aficionada da fotografia registrou a vida cotidiana com eloquência e brilhantismo. Na noite em que descobri o trabalho de Vivian Maier, perdi o sono. Mas ganhei uma referência de fotógrafa humanista, documental, socialista e feminista.

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Danielle Pereira é jornalista de formação, fotógrafa e viajante por paixão. Autora e idealizadora do Miradas.