Texto de Jussara Oliveira.
Alerta de spoiler! Esse texto contem informações sobre as primeiras temporadas da série americana Game of Thrones.
Dai você esta lendo ou assistindo alguma história de ficção (mais interessante imaginar que seja uma história de fantasia, aventura ou ficção cientifica) e o protagonista, ou um dos personagens masculinos principais, se atrai por uma personagem (uma mulher no caso) e, em dado momento, por vontade dele e aceitação dela (em outras palavras sem nenhum tipo ou nível de coerção), eles acabam fazendo sexo e os dois sentem prazer e se divertem com isso. Depois disso, os personagens continuam tendo uma relação saudável (pelo menos até que algo relevante na trama mude isso) e o personagem principal não sente qualquer tipo de culpa ou arrependimento sobre o que ocorreu.
Fácil visualizar essa cena, né? Se parar para pensar um pouquinho não é difícil achar diversos exemplos na maioria das obras seja em filmes, desenhos, séries, livros, quadrinhos, etc. Agora, imagine que é uma mulher a protagonista dessa história. Imaginou? Ok. Agora busque referências populares e atuais desse tipo de cena. Ficou difícil? Pois é. Se for buscar mais diversidade então dificilmente vai achar a mesma cena com personagens que saiam do padrão hétero-cis-branco-sem necessidades especiais.
Por que será que é tão difícil retratar mulheres exercendo sua sexualidade livremente mesmo em histórias e mundos utópicos? Porque é tão comum mostrar cenas de violência contra mulheres? Porque nos é tão difícil desassociar da cultura de estupro mesmo na ficção? Será que percebemos o quanto isso esta presente nas histórias de fantasia?
Na última temporada de série americana Game of Thrones, inspirada no livro de mesmo nome, a adaptação de uma passagem que teoricamente representava uma cena de sexo consentido entre os personagens Cersei e Jaime Lannister se transformou numa cena de estupro. Ao ser questionado, o diretor deste capítulo da série respondeu que não via a cena como um estupro e que a relação dos dois dava vazão para esse tipo de dinâmica de jogos de poder o que transformava o sexo em consensual… Oi? E já não é a primeira vez que isso ocorre. O mesmo ocorreu na adaptação da passagem sobre o sexo consentido no dia do casamento de Daenerys Targaryen.
Será que é tão difícil assim reconhecer a diferença entre sexo consensual ou não? Nem vou entrar no mérito da violência misógina presente na série, porque isso já foi bastante criticado. Mas, fico profundamente triste de ver como a sexualidade das mulheres tem sido explorada na televisão. Ainda mais nessa série que tem trazido grandes personagens femininas.

Veja, sou muito fã da série televisiva e dos livros. Acho extremamente válido e justificável que adaptações não sigam a risca aquilo que está no original. Também estou longe de achar o livro um exemplo de representação feminina. Mas, queria ver uma personagem tão forte e que luta tanto por sua independência, como a Cersei, ter pelo menos a agência sobre sua sexualidade respeitada. O pior foi ver comentários em fóruns sobre a série apoiando a violência, já que para alguns essa personagem é vista como manipuladora e imoral.
Na adaptação para a televisão a pouca agência das mulheres está se esvaindo. Cadê os relacionamentos afetivos e sexuais de Daenerys? Só porque ela á uma das “mocinhas” preferidas, não pode fazer sexo? Na série televisiva só exibem uma passagem rápida do contato que ela (por força/incentivo de seu irmão) tem com uma de suas aias. Depois que Khal Drogo morreu, ela parece ter se relacionado com Daario Naharis apenas uma vez, sendo que no livro ela mantém um relacionamento com ele e também se relaciona com Irri, outra aia que desapareceu nas novas temporadas da série.
Sim, no livro Daenerys tem relações bissexuais, mas na série televisiva parecem preferir ignorar sua sexualidade e enfatizar as aventuras sexuais de Oberyn Martell e Ellaria Sand da forma mais estereotipada possível. Ao que parece, os roteiros estão viciados demais na dicotomia: mocinha frágil e sexualmente recatada versus antagonista femme fatale. E, sair desses estereótipos parece ser uma missão quase impossível.
Basta observar o comportamento sexual das principais personagens femininas vistas como heroínas ou mocinhas: Daenerys Targaryen, Ygritte, Sansa Stark, Margaery Tyrell, Brienne de Tarth; em comparação com as outras personagens: Shae, Melisandre, Cersei Lannister, Lysa Arryn. Enquanto no primeiro grupo as mulheres são virgens ou se dedicam a apenas um parceiro, no segundo as personagens usam sua sexualidade como arma para manipular personagens masculinos e são retratadas como ardilosas e/ou egoístas.
Outras personagens que no livro tem uma sexualidade mais livre como Yara Greyjoy (Asha no livro) tem sua participação compactada na série. E, Ellaria Sand teve a adaptação mais fiel ao livro, o que deu a personagem pouquíssimos diálogos. Fora o fato de que no livro existe uma diversidade e quantidade maior de prostitutas que influenciam diretamente as tramas, mas na série essas personagens se tornaram apenas item de decoração/diversão.
Triste ver o quanto sexo ainda é tabu na ficção e o quanto a sexualidade feminina é ainda determinante para o julgamento de nosso caráter. As principais personagens femininas que tem feito sucesso no cinema ou na televisão vivem dilemas afetivos e sexuais bem distantes da liberdade e diversidade dos personagens e protagonistas masculinos.
Para não falar que não temos algum exemplo diferente, pesquisando e buscando referências com amigos, as poucas personagens famosas que encontrei que saem dessa esteriótipo foram:
- Sookie da série de televisão True Blood. Protagonista da série que trata sobre a convivência entre humanos e vampiros que se envolve durante as temporadas da série com vários personagens, mas vive sendo julgada por seus relacionamentos com eles.
- Barbarella. Protagonista de uma série em quadrinhos de aventura espacial adaptada para o cinema nos anos 60. Apesar da hiper sexualização da personagem dada a época em que este filme foi lançado (e a pouca mudança na caracterização das heroínas) depois de criar polêmica acabou virando um ícone feminista e pode ser considerada uma referência até hoje.

Espero que na próxima temporada de Game of Thrones ao representar as mulheres do povo livre e as Dornesas (que possuem no livro papel fundamental nos próximos acontecimentos) e os próximos passos de Asha/Yara Greyjoy a série não caia nos mesmos erros.
+ Sobre o assunto:
[+] Temporada de Game of Thrones chega ao fim confundindo o público.Por Isabelle Moreira Lima na Folha de São Paulo.
[+] Uma reflexão sobre estupro e violência contra as mulheres em Game of Thrones. Por Lidiany CS em Game of Thrones BR.
[+] A cena de estupro de Game of Thrones foi desnecessária e desprezível (em inglês). Por Madeleine Davies no Jezebel.
[+] Jaime Lannister é feminista: Porque a cena de estupro em Game of Thrones importa (em inglês). Por Ariana Quiñónez no Hypable.