Sou uma mulher e não posso viver uma mentira

Texto de Daniela Andrade.

Se eu já acho estranho falar em “opção sexual” para gays, lésbicas e bissexuais, para pessoas trans* eu acho o ocaso do descaso com o que vem a ser a construção identitária de gênero, que está num campo distinto da construção da sexualidade, ainda que porventura interligados.

Eu nunca escolhi ser mulher (trans*, no caso), a escolha foi outra: exteriorizar o que eu era ou viver uma mentira.

Em ambos os casos há um preço muito alto a ser pago, mas quando escolhi exteriorizar o que genuinamente eu sou, escolhi também NÃO pagar o preço de deitar a cabeça no travesseiro e continuar me perguntando: até quando vou viver essa mentira? Ou melhor, até quando vou fingir que vivo quando na verdade apenas sobrevivo?

Foto de Viljar Sepp no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Foto de Viljar Sepp no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Há tão poucas coisas no mundo que podemos mudar, por que não mudar o que podemos? Não que seja possível mudar com facilidade, as mudanças geralmente são difíceis pois exigem uma nova adaptação a uma outra realidade, um outro treino, uma outra perspectiva; e é preciso não só coragem, é preciso para além da coragem um objetivo muito bem maquinado: o meu objetivo era não morrer sem ter tido a oportunidade de viver quem eu era, de não continuar interpretando a farsa que haviam me imposto.

Eu paguei o preço de ter perdido a família, de ter perdido muitas vagas de emprego, de ter perdido amigos, de ter perdido tantas coisas que às pessoas travestis e transexuais estão sendo o tempo todo negadas, mas eu ganhei com a minha consciência, eu ganhei com a minha pessoa, e o que eu ganhei, intimamente, não há dinheiro no mundo que pague, não há valor mensurável para isso. Ao perder, eu ganhei.

Eu tive que sair de casa e me virar sozinha, e não, não é fácil se sustentar sozinha em uma cidade grande como São Paulo, não é fácil sobretudo quando as pessoas identificam em você a identidade de coisa — pois é assim que as pessoas travestis e transexuais são vistas dentro da sociedade brasileira: coisificadas.

Não, não é fácil enfrentar o desrespeito constante, o deboche, as piadas, os risos de canto de boca, o medo diário de que alguém vai te balear, esfaquear, espancar, estuprar, tomar você como objeto sexual pronto à espera de que qualquer um se aproveite. Não é fácil enfrentar os olhares e comentários do quão você é esquisita naquele dia que tudo o que você queria era que ninguém lhe notasse, tudo que você precisava era passar despercebida.

Não é fácil enfrentar a competição que existe inclusive dentro do próprio grupo de travestis e transexuais para decidir quem é mais travesti e quem é mais transexual — ou quem de fato o é, quem tem ou não tem o direito de se dizer mulher.

Não é fácil enfrentar o mundo dizendo-se mulher se as pessoas não querem ou não podem ler uma mulher em você, dizendo-se mulher transexual quando a sociedade decidiu que ser transexual é ser extremamente bonita e feminina aos olhos dos padrões cisheterormativos. Que ser mulher transexual é ter feito muitas cirurgias e ter uma genética que perfeitamente consegue responder à ingestão dos hormônios transformando seu corpo em um corpo digno das capas de revistas de beleza. E para isso, é preciso dinheiro, e como encontrar dinheiro quando essa mesma sociedade está dizendo o tempo todo que seu lugar é às margens, é a cata do que quem detem o poder socioeconômico em mãos lança como ossos roídos, ou é na pista de prostituição, despersonificada como são todas as profissionais do sexo aos olhos dessa sociedade que tampouco enxerga nessas pessoas humanidade, no máximo no salão de beleza ou no subemprego.

Não é fácil pedir o tempo todo para que por favor lhe tratem no feminino, que lhe tratem pelo nome que você reivindica como seu.

Não é fácil ser travesti ou transexual em uma sociedade que diz que por sê-lo, já somos erradas por excelência. E a minha identidade de gênero está grafada em meu corpo de tal forma que dela não posso me livrar ou camuflá-la a fim de enganar a sociedade, não há um momento que dê para eu esconder que sou uma mulher transexual, todos o vêem o tempo todo com todos seus julgamentos, ignorâncias e preconceitos.

Uns preferem se afastar, outros fingirem que você não está ali, incrédulos de ver alguém como você ocupando um lugar que decididamente a sociedade disse que não era o seu; afinal, seu lugar é justamente onde as “pessoas de bem” não estão presentes. Outros preferem agredi-la, violentá-la seja com palavras, seja por atos e ações, seja fisicamente.
É realmente muito difícil sopesar tudo que enfrentaremos exteriorizando o que somos, e muitas das batalhas que enfrentaremos ou enfrentaríamos só de fato iremos conhecer quando passarmos por aquilo.

Às vezes você se pergunta: valeu à pena? Mas qual seria a outra opção? A outra opção seria, além de ser agredida pela sociedade, agredir-se diariamente dizendo que eu própria não tenho o direito de ser a pessoa que de fato sou, que eu própria estou violando esse meu direito.

Enfrentaria o mundo para não ter que aprisionar a minha consciência, aprisionar a pessoa que eu sou, matar em vida a Daniela. Mais do que coragem: uma profunda NECESSIDADE de viver sendo eu mesma, uma profunda NECESSIDADE de pelo menos não ter que me violentar mentindo para mim mesma que isso faria de mim um ser humano um pouco mais feliz.

Há o cansaço, há a vontade da automutilação, da autodestruição; como uma fogueira que nos dias de ventania todos acham que irá se apagar, fica fraca, pequenina, mas ainda é fogo ardendo, ardendo a vontade de ser fogo, de iluminar para depois resplandecer como labareda que cresce e diminui, e de repente fica inalcançável.

Autora

Daniela Andrade é uma mulher transexual que luta ansiosamente por um presente e um futuro mais digno às todas as pessoas que ousaram identificar-se tal e qual o são, independente daquilo que a sociedade sacramentou como certo e errado. Não acredito no certo e o errado, há muito mais cores entre o cinza e o branco do que pode supor toda a limitação hétero-cis-normatizante que a sociedade engendrou. Escreve em seu blog pessoal: Alegria Falhada. Administra a página: Transexualismo da Depressão.

Esse texto foi publicado originalmente em sua página pessoal do Facebook no dia 25/07/2014.