Texto de Patricia Guedes.
No início de 2013, a estrela sul-africana do atletismo paralímpico, Oscar Pistorius, mais uma vez ganhou as manchetes de jornais do mundo inteiro. A diferença, desta vez, foi o motivo: na noite do dia 14 de fevereiro, o atleta matou a tiros sua então namorada, a modelo e apresentadora Reeva Steenkamp. Segundo Pistorius, Reeva foi confundida por ele com um assaltante que teria entrado em sua casa. Portanto, ele teria atirado impensadamente, no intuito de proteger a namorada. O veredito sobre o caso só será conhecido em setembro.

Frequentemente o argumento da passionalidade é utilizado como justificativa para o feminicídio. No caso de Pistorius, a linha da defesa de seu julgamento é a de que o atleta teria cometido o crime por ter dupla personalidade, já que teria que conviver com a ideia de ser um super atleta, ao mesmo tempo em que sofreria pela tragédia da deficiência em sua vida. “Você tem um paradoxo de um indivíduo que é extremamente capaz e um indivíduo que está limitado de forma significativa”, disse o médico Wayne Derman, da delegação sul-africana das Paraolimpíadas de Londres 2012, ao falar em favor de Pistorius durante o seu julgamento.
Em contraponto à defesa do atleta, temos um histórico de situações nas quais Pistorius demonstrou possuir total autonomia motora, nem mesmo se identificando como deficiente físico. Em 2007, em entrevista ao jornal New York Times, Pistorius afirmou que se recusa a estacionar em vagas para pessoas com deficiência. “Eu não me vejo como deficiente. Não há nada que eu não consiga fazer que atletas não-deficientes consigam”, disse. Nestas atividades, inclusive, parece estar bastante à vontade com a sua condição física, já que não costumava considerá-la impeditiva de nenhuma tarefa que devesse realizar. Conhecido como “Blade Runner”, Pistorius promoveu uma pequena revolução ao ser o primeiro atleta sem pernas a competir numa Olimpíada tradicional. Além disso, entre seus hobbies está dirigir lanchas, motos e carros velozes.
Independente da sentença final no julgamento, é importante que não se faça um linchamento público, nem se faça um juízo deste caso sob o viés capacitista. O principal motivador do crime foi o machismo e um de seus principais subprodutos: o ciúme. Em mensagens trocadas pelo casal que foram lidas no tribunal, Reeva diz sentir medo do namorado às vezes e não entender sua agressividade em excesso. Em outro momento, ela relata que foi forçada a deixar uma festa mais cedo na qual estariam amigos de quem Pistorius mostrava-se desconfiado. Reeva Steenkamp engrossa as estatísticas ao ser mais uma vítima de violência cometida por um companheiro que inúmeras vezes mostrou-se abusivo no relacionamento. Neste caso, a deficiência de Pistorius é uma característica física coadjuvante, quase irrelevante.
Pesquisas indicam que a taxa de homicídios de mulheres na África do Sul é cinco vezes maior do que a média global. Além disso, apenas 14% dos casos de estupro julgados recebem condenação. Porém, assassinatos e estupros, aparentemente, representam o iceberg de uma epidemia muito maior de violência doméstica. Um bastão de cricket ensanguentado foi encontrado na casa de Pistorius, após diversos relatos de vizinhos de que haviam brigas constantes na casa. Por isso, ele está sendo acusado de cometer homicídio premeditado.
Rachel Jewkes, diretora da unidade de saúde e gênero da MRC (South African Medical Research Council) afirma que a violência no país é alimentada principalmente por uma cultura machista que permeia todas as raças e classes sociais. “É esperado que os negros sul-africanos provem sua masculinidade através da posse de armas brancas ou pelo fato de terem diversas namoradas. Brancos africânderes, como Pistorius, não precisam colecionar namoradas, mas o seu amor e fascínio por armas de fogo alimentam seu desejo de provar sua masculinidade no contexto sul-africano”.
O caso de Pistorius é emblemático porque demonstra bem os desdobramentos da interseccionalidade. Não podemos perder de vista o sistema que fomentou o crime cometido por Oscar Pistorius. O machismo, a estrutura que dá forma à misoginia e que mata mulheres todos os dias, desta vez vitimou Reeva Steenkamp. Ainda que o crime esteja relacionado com outros eixos opressivos e discriminatórios como o capacitismo, não podemos transformar casos como este em uma Olimpíada da Opressão. O fato de sermos subjugados por uma determinada estrutura opressora não justifica, nem nos isenta de cometer injustiças e opressões em outros níveis. Logo, ainda que Pistorius se sentisse diminuído por sua deficiência motora — o que já se percebeu que não ocorre — ele não estaria livre para exercer a misoginia como fez. Há muito mais em julgamento aqui do que um assassinato cometido por um ídolo nacional. O machismo e a violência doméstica são os verdadeiros réus deste caso.