Atenção à saúde da mulher: o que pode mudar?

Texto de Renata Mencacci para as Blogueiras Feministas.

Aviso: esse texto aborda a atenção à saúde das mulheres cisgêneros. Fez-se essa escolha por haver o entendimento de que a saúde das mulheres trans tem diversas especificidades que merecem atenção especial e que não devem ser encaixadas num texto mais generalista sobre saúde da mulher e, principalmente, por esse não ser o lugar de fala de quem o escreve, de modo que não há propriedade e nem acúmulo suficientes para que esse assunto seja tratado da maneira mais adequada.

Mulher busca atendimento em mamógrafo móvel da Secretaria de Saúde. Recife, 2014. Foto de Inaldo Lins/PCR.
Mulher busca atendimento em mamógrafo móvel da Secretaria de Saúde. Recife, 2014. Foto de Inaldo Lins/PCR.

A primeira problematização que deve ser feita, em se tratando da atenção à saúde da mulher, é: qual o profissional que atende a saúde da mulher? É inevitável que venha, imediatamente, às nossas mentes a figura do ginecologista. E quais são as indicações para uma consulta ginecológica? A começar, a primeira menstruação ou o início da vida sexual. Depois disso, é indicado que toda mulher procure um atendimento ginecológico de rotina, uma vez ao ano, para que seja realizado um exame de toque, o exame pélvico e o Papanicolau. Em casos de alterações do ciclo menstrual, corrimentos vaginais, irritação, dor durante a relação sexual ou sinais estranhos na vulva, indica-se que esse acompanhamento seja feito num espaço de tempo menor. Como observado, esse modelo de atendimento à mulher, proposto pela Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo, fica restrito à saúde reprodutiva. Não se vai além do útero.

Devemos, então, nos questionar: a mulher é definida e limitada ao seu órgão reprodutor?

Partindo-se de uma análise estrutural, a resposta para essa pergunta é “sim”. É impossível discutir saúde da mulher sem fazermos uma avaliação de como o gênero é construído social, histórica e culturalmente. Essa construção, que permeia e determina também a construção da sexualidade feminina, fundamenta a atenção que é oferecida à saúde da mulher nos dias de hoje e as políticas públicas voltadas a essa parcela da população. Então, ao pensarmos a atenção à saúde da mulher, devemos partir do ponto em que percebemos que a saúde oferecida hoje é também instrumento de manutenção de uma ordem social e que a luta por uma atenção verdadeiramente integral à saúde da mulher é uma luta feminista.

Em primeiro lugar, devemos retomar um pouco da história da assistência à saúde no Brasil e no mundo. Na VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, foi apresentada a Reforma Sanitária, que teve fundamental importância durante o processo de remocratização do país e na construção da Constituinte. O maior e mais palpável fruto do Movimento Sanitarista foi o Sistema Único de Saúde (SUS), previsto na Constituição de 1988 e que garante a saúde enquanto direito fundamental. O conceito de saúde que permeia toda a Reforma Sanitária é aquele apresentado durante a VIII CNS:

saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. é, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida.

[… Por não ser um conceito abstrato, saúde] define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas.

Esse conceito, que caminha no sentido de uma saúde emancipadora, não é o que prevalece na assistência à saúde nos dias de hoje, como consequência da construção histórica do sistema de saúde. Fica evidente, no correr do tempo desde 1988, que o projeto do SUS não foi concretizado em sua plenitude e isso se deve muito à incoerência existente entre a ideologia vigente no país e levada a frente por seus governantes e a ideologia proposta pelo Movimento Sanitarista, essencialmente marxista e, dentro do contexto proposto, subversor da ordem.

É dentro dessa inconsistância que a saúde no Brasil caminha os mesmos passos que a saúde no mundo: durante a década de 1980, num momento de crise econômica mundial, vivemos uma grande influência do Banco Mundial na construção e reformulação de conceitos de saúde. Em 1993, o próprio Banco Mundial cria a ideia de “cesta básica de saúde”. Esse ideário permeia a atenção oferecida até hoje e é nesse sentido que devemos compreender a saúde da mulher concebida hoje como um pilar fundamental para a reprodução e consolidação dos estereótipos de gênero historicamente construídos.

Desde Hipócrates, acreditava-se que a funcionalidade do útero estava ligada à gestação. O “pai da Medicina” afirmava que a histeria seria uma doença de caráter psiquiátrico causada pelo não cumprimento do papel biológico da mulher. A solução era simples: ter filhos. Mais tarde, na Idade Moderna, passou-se a acreditar que a cura para a histeria residia no casamento. No século XIX, a maternidade passa a ser extremamente valorizada, sendo colocada como um ato de nobreza. Não é coincidência que essa concepção apareça no contexto da Revolução Industrial: o estabelecimento da sociedade capitalista corrobora para a concretização dos papéis de gênero.

A negação da sexualidade da mulher e a afirmação da maternidade são instrumentos de controle social fundamentais, que garantiram a confinação das mulheres às tarefas de gerenciamento doméstico e, de fundamental importância para a manutenção do novo sistema, a superexploração das mulheres operárias. Hoje, isso se mantém: o trabalho doméstico é feito de graça por mulheres, que assumiram historicamente essa função, e as mulheres trabalhadoras — no Brasil, a maior parte alocada nos setores de serviços — são extremamente exploradas, recebendo salários inferiores aos dos homens nas mesmas funções. Outro ponto central que estabelece a função social de reprodução das mulheres é a necessidade de se renovar, sempre, a força de trabalho. Se as mulheres abdicarem da maternidade, quem irá gerar nossos futuros trabalhadores?

A saúde cumpre aí o papel ardiloso de garantir que as mulheres continuem dando à luz. Desde a formação, os profissionais da saúde ignoram que a saúde da mulher envolve aspectos psicológicos e sociais específicos, determinados pela construção de gênero e pela soberania social exercida pelos homens. Ignoram também que alguns problemas de sáude são específicos das mulheres justamente por derivarem dessa subjugação devida ao gênero.

Pouco se fala sobre negociação de camisinha, sobre a vulnerabilidade da mulher nas relações sexuais ou como a abordagem da prevenção do HIV nas mulheres foi deficitária (para não dizer inexistente) nas políticas de saúde pública nas décadas de 1980 e 1990. Pouco se fala que a proporção de burnout entre homens e mulheres é de 1:2. Pouco se fala plano de parto e da autonomia sobre o próprio corpo. Pouco se fala que as mulheres negras recebem menos anestesia que as mulheres brancas. Pouco se fala da saúde física e psicológica das mulheres cuidadoras. Enfim: pouco se fala da saúde da mulheres. Fala-se de reprodução – de forma culpabilizante – e ponto.

Para se abordar de forma verdadeiramente integral a saúde das mulheres, a formação em saúde deveria abraçar as ciências humanas e estudar profundamente como as relações de gênero são socialmente estabelecidas em nossa comunidade. A partir desse ponto, passa-se a entender as violências diárias às quais as mulheres são submetidas e a abordagem em saúde passa a ser outra. O atendimento passa a ser pessoalizado e o acolhimento se dá de forma efetiva. Cria-se real empatia e a possibilidade de garantir que a mulher possa decidir sobre si mesma. Tudo isso deve ser feito levando em consideração os recortes de classe, de raça, de orientação sexual, de crenças e religiões, de identidade de gênero, etc, de modo que a determinação social do processo saúde-doença seja orientadora das políticas de saúde voltadas para a mulher. Nesse sentido, o PNAISM (Programa Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher), proposto pelo Ministério da Saúde, apresenta um avanço importante que reflete o acúmulo teórico sobre a questão. Na prática, temos muito a avançar: desde a formação em saúde até a atuação profissional propriamente dita.

Por fim, podemos entender que o avanço na direção de uma atenção à saúde da mulher que contemple suas reais necessidades, para além do útero, é um passo determinante na desconstrução dos papéis gênero. Ele representa o entendimento da mulher como um ser humano com especificidades ao invés de uma máquina geradora de filhos e passível de exploração e opressão. Representa a apropriação de si mesmas por parte das mulheres e o direito à escolha. Representa emancipação e luta por direitos fundamentais. Representa, em diversos níveis, um passo em direção à liberdade. A luta por saúde da mulher – feita de forma completa e coerente – é uma luta feminista e avança!

Autora

Renata Mencacci é estudante do terceiro ano de medicina da USP, faz parte do Coletivo Feminista Geni da FMUSP e e da direção executiva nacional dos estudantes de medicina, como coordenadora regional e coordenadora de cultura