Texto de Marcela Tosi para as Blogueiras Feministas.
Uma cantora, seu produtor, uma grande gravadora e a Justiça dos EUA. Personagens de uma história que, graças a outras três: a grande mídia, fãs da cantora e feministas, foi parar nos trending topics do Twitter, em publicações que se multiplicam nas redes sociais e em algumas reportagens nas seções de Entretenimento. Uma mulher, seu abusador e a Justiça. Personagens de uma história cotidiana que passa despercebida, que se repete incansavelmente e não ganha as manchetes nem da seção Policial. Retratos, visíveis ou não, de uma sociedade em que o humano importa menos que as indústrias e em que certas pessoas valem mais que outras a depender de seu gênero, sua classe, sua cor.
Qual é o valor de uma mulher? Qual é o valor de seu corpo, sua segurança, sua carreira? E uma vez que você o determina, como ele sustenta o valor de um homem, de um negócio, de um conglomerado, de uma sociedade? Ou será que não o sustenta de maneira alguma?
Em outubro de 2014, Kesha, que conseguiu sucesso e ganhou disco de platina através do hit Tik Tok de seu álbum de estréia em 2010, denunciou seu produtor, Lukasz Gottwald (Dr. Luke), por assédio e abusos físicos e psicológicos. Hoje, a cantora está impedida de continuar trabalhando. Em 19 de fevereiro, a Suprema Corte de Nova York determinou que ela deve permanecer contratualmente vinculada a Sony e a Kemosabe, a gravadora criada e dirigida por Dr. Luke.

A juíza Shirley Kornreich ouviu o pedido de Kesha para uma liminar que lhe permitisse gravar fora do alcance do produtor não como um pedido para sua segurança física, psicológica, sexual e econômica, mas um pedido para “dizimar um contrato que foi fortemente negociado e comum para a indústria”, como Kornreich colocou. Legalmente, aos olhos morais do tribunal, é o contrato que vem em primeiro lugar. A Sony investiu US$ 60 milhões na carreira da cantora, os advogados da gravadora lembraram a juíza – o que é uma violação física e emocional em relação a isso?
O dinheiro fala mais alto do que você ou eu jamais poderíamos em um tribunal, mesmo se fôssemos estrelas pop cujos fãs esperam lá fora por horas para nos apoiar. Interesses corporativos são mais altos do que a ética e empatia, mais altos do que a autonomia ou direitos básicos à segurança. Quando uma violação contratual e uma violação humana são colocadas frente a frente no tribunal, idealistas poderiam pensar que a segurança de um ser humano tem precedência. Entretanto, a indústria da música, como muitas indústrias, está predisposta a favorecer apenas sua própria segurança.
Trata-se de mais que uma estrela pop lutando por sua liberdade ou um investimento de US$ 60 milhões em uma carreira comercial brilhante. É muito mais do que se ela pode vestir em seus collants, se encher de glitter e fazer outro álbum, livre de um homem que ela diz que a aterroriza. É ainda mais do que a misoginia sistêmica da indústria do entretenimento ou a maneira que as mulheres na música e cinema têm sido controladas e coagidas.
A Justiça não falhou apenas com a cantora, ela falha diariamente com todas as mulheres. Falha com a mulher que tem suas denúncias de violência doméstica desconsideradas, amenizando a história como uma simples briga de casal – e em briga de marido e mulher, não se mete a colher, diz o ditado popular. Falha com a mulher que vai fazer uma denúncia de estupro e a perguntam que roupa ela estava usando. Falha ao prender a mulher que aborta. Falha ao deixar a autonomia feminina na mão do Estado. A Justiça falha porque é o reflexo de uma sociedade que odeia as mulheres. A Justiça falha no que deveria ser segundo sua concepção filosófica pura, mas para seu papel socialmente construído ela serve bem, muito bem, obrigada.
Kesha é mais uma das mulheres que segue a torturante caminhada posta pela Justiça a qualquer uma que denuncie abusos sofridos: julgamentos que se estendem indefinidamente, humilhações e ataques contra a legitimidade do seu testemunho e da experiência vivida, uma vida restrita em sua autonomia. E, olhem, é a uma mulher branca, cisgênero, rica e famosa e, portanto, com privilégios. Ainda assim, sofreu e não foi amparada pelo Estado e pelas instituições sociais. Pensem no que acontece com mulheres negras das periferias do mundo e ninguém sabe ou se importa.
Há aqui ainda algo talvez muito maior que a realidade de violência que conhecemos tão bem: a força das mulheres. O clamor público sobre o caso tem sido verdadeiramente importante. Há não muito tempo, as mulheres aos olhos do público não tinham coragem para apoiar uma a outra. Defender outras mulheres e causas feministas é hoje pauta que não pode ser ignorada (não só política, mas mercadologicamente, precisamos dizer), mas é também luta que se faz cada vez maior. E, assim, enquanto Kesha é indefinidamente silenciada, sua voz nunca foi tão alta. A voz das mulheres se faz ouvir e, juntas e atentas às nossas particularidades, faremos ainda mais.
Autora
Marcela Tosi é mulher, feminista, lésbica, formada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), transformada pelo feminismo.