Marilia Coutinho, corpo e alma

Um corte na jugular separa as duas vidas de Marilia Coutinho: a angústia e a sensação de fragmentação de um lado e, de outro, a luta pela integração entre mente e corpo, através do esporte. A tentativa de suicídio, em 2005, é o epicentro de um processo de transformação que a colocou num lugar de destaque no levantamento de peso. Ao mesmo tempo, ia colocando suas reflexões em um blog. “Eu comecei a escrever no ano que eu escapei de morrer”, lembra Marília.

Marilia Coutinho, durante a entrevista para as blogueiras. Foto: Verônica Mambrini

O livro Estética e Saúde, lançado este ano, reúne esses textos. Esse foi o pretexto da entrevista coletiva que nós fizemos com a Marilia Coutinho – participamos eu, Jeanne CallegariVerônica MambriniMaia CatDaniela Valverde (de Brasília, via Skype) e Patrícia Guedes (também de Brasília, por email). A conversa, de mais de três horas, foi bem além disso. Foi aprendizado e troca de experiências, como Marília conta em post em seu blog.

O ponto central foi a desigualdade nas relações de gênero.

Eu sinto necessidade que exista mais discussão sobre as relações de gênero. Não acho que elas estejam abertas hoje. Pelo contrário, acho que estão sufocadas pela falsa noção de que foram superadas. Nada foi superado, mas a desigualdade foi substituída por uma forma diferente, tornando mais necessária ainda a nossa organização e apoio recíproco, porque são novas questões. Questões que se transmutam requerem mais esforço ainda. As questões não foram superadas e adquiriram uma forma nova, é como um vírus de ficção científica.

Mas para chegar lá, Marília contou sua trajetória. Ela nasceu em uma família da “elite simbólica”. Aos 14 anos, era a grande promessa da esgrima e se preparava para os jogos olímpicos que viriam três anos depois. Mas foi arrancada desse mundo e levada para o Partido Comunista, onde, entre diversas violências, foi estuprada. Ela revelou isso em uma entrevista para a revista Trip em fevereiro e, desde então, recebeu diversos ataques.

O que é sexo consensual? O que é realmente consensual? Sexo consentido, é consentido por quê? Eu classifico de estupro qualquer forma de sexo que não tenha sido simetricamente desejado pelas duas partes. Teve um ato especificamente, que eu inclusive denunciei internamente, em que eu tentei escapar, mas tinha sido drogada. Me deram diazepan com álcool. Mas várias outras relações que eu tive não ficaram longe disso. Porque era obrigatório, não tinha prazer nenhum.

Depois disso, ela seguiu para a vida acadêmica. Estudou biologia, transitou entre diversas áreas e se doutorou em Sociologia da Ciência.

Até 2004 eu fiquei na carreira acadêmica, em que eu ficava perseguindo grandes paixões, grandes problemas pra resolver. Mas sempre dilacerada por angustia, pela sensação de estar incompleta. A sensação de estar ok, de ser eu, feliz, satisfeita só existiu em dois momentos na minha vida. Lá atrás, quando eu era atleta de esgrima, ou agora. Eu vi que não dava, que o trajeto de mais e mais psicotrópicos pra resolver mais e mais angústia tinha chegado no ponto que não estava valendo a pena. Eu resolvi parar de tomar remédio e voltar a treinar. Me matriculei numa academia tradicional. E aí eu descobri o treinamento de força. Acabaram os meus sintomas.

Eu não acredito em normalidade. Eu tenho essa condição, que me permitiu estar em equilíbrio dinâmico – e o principal marcador pra isso é “eu estava feliz” – estava feliz enquanto eu era uma atleta de alto rendimento de esgrima, enquanto eu estava em movimento. Eu era uma só. Eu fui uma criança infeliz, fui uma adolescente infeliz. Quando eu saí da minha condição de atleta, eu não sabia mais quem eu era. Essa é uma dica importante, saber se você esta com ou sem o seu corpo. Você começa a abusar o seu corpo, a maltratar seu corpo. Porque seu corpo é seu, está em terceira pessoa. Você tem uma existência qualquer, essencial, separada dele. Isso se inaugurou quando me tiraram da identidade de atleta.

Marilia Coutinho
VIII Encontro Internacional de Esportes e Educação Física - Instituto Phorte - 31 de julho de 2011 / Acervo pessoal

Marília saiu da vida acadêmica e entrou para a academia de ginástica. Porém até descobrir exatamente o que estava procurando, o processo de tatear no escuro foi complicado. E a maneira como a atividade física é oferecida nas redes de academia normalmente também tem aspectos de alienação corporal, de obsessão com padrões estéticos.

O ambiente das academias tradicionais é tóxico, a futilidade da formulatria é tóxico. E é também negação do corpo. O corpo, se fosse cultuado, seria lindo, seria o culto à vida. Mas o que existe é o culto à morte, o culto à forma. A Real Doll é um brinquedo erótico, uma mulher de silicone, que custa 14 mil euros. Ela tem temperatura, viscosidade, fica molhada. Me deu um arrepio quando vi aquilo. Porque eram cadáveres perfeitos. Foi quando me deu esse clique: formulatria é muito parecido com necrofilia. Eles nos querem mortas. Isso é o que os ambientes de treinamento tradicionais fazem.

Ela fala com paixão dos esportes de força. Tanta paixão que mesmo uma completa leiga (como eu) consegue enxergar a poesia na concentração necessária para levantar a carga – em como levantar peso pode ser uma forma de se sentir mais leve. Porém há resistência a uma mulher, sozinha, que se torna não apenas atleta de destaque mas também intelectual no assunto – Marília escreveu De Volta ao Básico, falando sobre técnica, fisiologia e história no powerlifting.

Mulheres atletas de força são rapidamente submetidas. Em geral são bem tratadas se são mulheres de alguém. São submissas, mais caladas. Os esportes de força são simbolicamente associados ao masculino. Se eu tivesse ido para a esgrima, eu não enfrentaria a mesma oposição.

Não existe nenhum segmento, nenhum setor da vida social que seja imune ao machismo. Todos são. Dentro da USP tem violência sexista, mas é diferente da que eu enfrento no dia-a-dia da política esportiva. O grande desafio é identificar as peculiaridades da expressão da violência sexista em cada segmento.