Texto de Luana Tolentino.
Embora eu seja historiadora, não tenho muito apreço por museus, exposições ou monumentos. Gosto mesmo é de gente! Nada me fascina tanto quanto as feiras livres, os mercados municipais, zonas de comércio popular e padarias. Sim. Adoro aquelas padarias gigantescas. Entre um cafezinho e outro, gosto de ficar prestando atenção nas conversas, nos sotaques das pessoas.
Em agosto estive em Brasília. Quis muito conhecer a Feira do Guará mas, ocupada com os compromissos de trabalho, não pude ir. Diverti muito batendo papo com os taxistas, que sempre têm boas histórias. Soube por um deles, detalhes jamais revelados sobre a morte do então deputado federal Luis Eduardo Magalhães. Outro, disse que o Hotel Nacional, o oficial da Copa de 2014, enfrenta graves problemas financeiros. O que não deve ser mentira. Fiquei hospedada lá. Alguém explica um hotel de alto padrão receber pagamentos somente em dinheiro?
Contudo, nada nem ninguém me encantou (e emocionou) tanto quanto a Cilene. Uma piauiense porreta, funcionária terceirizada da UnB.

Cilene, assim como muitos nordestinos, deixou o interior do Piauí nos anos 80 em busca de uma vida melhor. Na época, tinha apenas 8 anos. Desde então mora em Planaltina, cidade satélite de Brasília. Casou-se aos 15. Aos 19, já era mãe de 3 filhos. Gabriela, sua filha mais nova, hoje com 18 anos, é mãe do pequeno Rafael, que tem 3 aninhos.
Separada, Cilene mora com os filhos e os dois netos. Um deles estava desempregado. O outro trabalha na construção civil. Gabriela não concluiu os estudos e além dos serviços da casa, cuida do filho.
Além de curiosa, sou apaixonada pelo nordeste e pelos nordestinos. Perguntei como era Oieras, sua cidade natal. Perguntei também se, com a queda dos preços das passagens aéreas, ela visitava a família sempre. Cilene respondeu o que eu não desejava ouvir:
Que nada! Aqui em Brasília a gente só trabalha pra comer. Ganho R$ 550,00 pra limpar a Universidade. Com os descontos, meu salário cai pra R$ 465,00. Não tenho vergonha de dizer. Se a senhora quiser até te mostro meu contra-cheque.
Mudei o rumo da prosa. Quem me conhece, sabe bem como essa conversa iria terminar. A historiada e aprendiz de cronista aqui se desmanchando em lágrimas. Resolvi perguntar pelos netos. Cilene abriu um sorrisão ao falar dos pequenos.
Passava das duas horas de uma tarde de muito calor. Cilene é faladeira, assim como eu. A conversa parecia que não ia ter fim. Perguntei se ela não iria almoçar. Recebi a resposta de Cilene como quem leva um soco no estômago e não pode reagir:
Não trabalho no sábado. Não tenho dinheiro pro almoço. A coordenadora (uma das organizadoras do Seminário Internacional Mulher e Literatura) pediu que eu viesse para cuidar da limpeza dos banheiros. Meio-dia eu já tinha acabado tudo, mas ela falou que eu só posso ir embora cinco horas, porque é nesse horário que ela pode acertar comigo. Podia estar na minha casa cuidando do meu neto, mas tenho que esperar.
Não sei explicar o que senti naquele momento. Raiva. Ódio. Realmente não sei. Pensei: Uma infeliz que se diz feminista e passa a vida inteira estudando, publicando livros e artigos sobre a questão de gênero, na primeira oportunidade que tem humilha, maltrata, explora outra mulher em função de sua classe social.
Antes de tentar entender tudo isso ou procurar explicações em Marx ou nas obras da Heleieth Saffioti, precisava resolver um problema de maior urgência. A fome. Cilene contou-me que não podia ficar mais que 3 horas sem comer em função de uma anemia que adquiriu durante a infância. Tirei um dinheiro da carteira. A essa altura, meus olhos lacrimejavam, por mais que eu tentasse evitar. Depois de agradecer não sei quantas vezes e repetir – “Deus te pague” tantas outras, perguntou porque eu estava chorando – “A senhora parece ser tão feliz”!
Respondi que sabia exatamente o que era ser humilhada daquela maneira. Dez anos atrás, eu também estava naquela condição. Tudo o que ouvira, era inaceitável pra mim. Disse que infelizmente a situação dela era a de milhões de mulheres do Brasil.
Cilene trouxe-me um passado que faço questão de não lembrar. Esquecer eu não posso, mas lembrar é uma questão de escolha. Trouxe ainda a certeza de que temos muito a fazer para conscientizar as Cilenes deste país do quadro de violência e subordinação em que vivem. E só assim criar mecanismos para que elas também lutem contra toda e qualquer forma de opressão. Para que isso seja possível, o caminho mostra-se longo, árduo e decerto tortuoso. Demanda muitos esforços de nossa parte. Seja enquanto feministas, ou simplesmente enquanto homens e mulheres capazes de enxergar o outro como igual, como semelhante.