Amélia versus Emília: samba e feminismo

Não é preciso ir muito longe pra achar machismo em letras de músicas e, em se tratando de samba, a coisa não é diferente. O curioso é que, dentre tantas, foi a clássica canção Ai, que saudades da Amélia, escrita pelo Mário Lago, se tornou um símbolo, uma referência popular pra idéia de mulher subjugada pelo marido, que lava, passa, cozinha e faz tricô enquanto o macho alfa trabalha pra sustentar a família. Há uns anos atrás, li um artigo na Revista dos Estudantes de História da UFF (a saudadosa Roda), um artigo chamado “Em defesa da Amélia”. E, resumidamente, o artigo falava assim: Peraí, alguém já parou pra escutar com atenção a letra dessa música? Onde está dizendo que Amélia era subjugada pelo marido? Analisemos.

Basicamente, o sujeito está discutindo com sua companheira atual o problema de ela fazer uma porção de exigências – provavelmente econômicas – enquanto ele é apenas um pobre rapaz, sem grana, que não dá conta de cobrir todas as despesas. A gente não pode nem argumentar que o eu-lírico esteja acusando todas as mulheres de serem mercenárias porque, ora, a Amélia era exatamente o contrário. Companheira diante das adversidades da vida, ela não fazia tanta exigência e, quando via o sujeito contrariado por aquelas condições de vida, dizia “Meu filho, o que se há de fazer?”. OK, talvez a Amélia fosse meio resignada politicamente, aceitando meio bem-até-demais a situação de pobreza. Mas aí é outro problema, é um problema ideológico, tanto dela quanto dele. A questão é: a música não diz em momento algum que a vida da Amélia era lavar, passar, cozinhar e fazer tricô condescendentemente (!) para o seu homem. Só que ela era uma boa companheira e, por isso, era mulher de verdade.

Por sua vez, uma personagem de letra de samba que tinha mais a ver com essa descrição da qual Amélia é acusada há décadas é Emília, imaginada por Wilson Batista. Wilson, pra quem não sabe, é o famoso sambista da polêmica com Noel Rosa. Os dois trocavam farpas via canções, até que o Wilson esculhambou e levou pro lado pessoal mais sacana compondo Frankenstein da Vila, que, basicamente, chama o Noel de “feião”. Pois bem, vamos dar uma olhada na letra de Emília:

Aqui, a coisa está bem mais explícita. “Não desfazendo das outras, mas Emília é mulher!”. Essa música é tão explicitamente o que as pessoas consideram que Amélia seja que chego a suspeitar se um dia alguém não confundiu os nomes e a expressão popular acabou ficando assim, pra azar da Amélia.

Curiosamante, foi o mesmo Wilson Batista quem compôs Sambei 24 horas, canção com um eu-lírico feminino muito do espertinho. Essa é bem menos conhecida que as anteriores, mas tem uma versão bacana grava pela Cristina Buarque de Hollanda num álbum que ela só canta canções do Wilson, chamado Ganha-se pouco, mas é divertido (recomendo fortemente, o disco é demais). Essa não tem no VocêTubo, mas, pra vocês não ficarem na seca, vai a única versão salvadora que achei:

Aí temos uma espécie de versão feminina do malandro tentando desenrolar com o cônjuge diante do fato de ter chegado em casa lá pelas tantas da madrugada, vinda do samba – que não é qualquer samba não, é pras bandas de Madureira, Oswaldo Cruz, lar da Portela, ponto tradicional de samba no Rio de Janeiro. Não sei se dá pra classificar como um samba feminista, mas que essa senhora do samba dificilmente é a Emília, isto podemos dizer com alguma certeza.

Fiz uma pesquisa rápida no meu acervo mental e não achei nenhum samba que pareça explicitamente feminista. Vocês tem alguma dica?

*Imagem do destaque: cena do documentário Noel Rosa, o poeta da Vila e do Povo.

Autora

Bárbara Araújo é professora de história, feminista, anticapitalista, capoeirista, flamenguista e poeta sazonal.