Quando se fala em educação, logo pensamos naquela pessoa “mal educada” ou “bem educada”, que recebeu uma “má educação” ou uma “boa educação” da família ou mesmo da escola. No entanto, desde que nascemos, somos socializados em uma família (numa escola, num bairro, num país, num segmento social etc) com modos de vida, visões de mundo e maneiras de nos posicionar no mundo que nos condiciona, consciente e inconscientemente, a seguir certos padrões e regras. Somos condicionados e não determinados, porque se a educação fosse determinante, não haveria espaço para transformações.
Falando de maneira bem simplificada, a todo esse processo chamamos de educação.
Esses dias eu estava lendo uns artigos do Annual Review of Sociology, uma revista acadêmica que faz revisões bibliográficas anuais sobre o que vem sendo produzido na área de Sociologia, majoritariamente de língua inglesa, nos últimos anos sobre determinados temas, quando me deparei com o texto “Relationships in Adolescence” (“Relacionamentos na Adolescência“), de 2003 e escrito por Peggy C. Giordano.
Neste artigo, a autora faz um levantamento bibliográfico de “pesquisas recentes sobre a natureza, significado e impacto dos relacionamentos extra-familiares durante a adolescência” e utiliza estudos, tanto quantitativos como qualitativos, “para desenvolver a ideia de que amizades próximas, redes mais amplas de pares e relacionamentos românticos têm significados e significância diferentes para o desenvolvimento do adolescente” (p. 257).
Dito isto, minha intenção*, aqui, não consiste em fazer um resumo do artigo e nem resenhá-lo, mas queria compartilhar dois dos vários casos que a autora cita e que me chamaram a atenção por expressarem exemplos do que podemos nomear de “educação dos sentidos”. Termo cunhado por Peter Gay, o conceito de “educação dos sentidos” foi muito bem operacionalizado por Michel Foucault em seus livros para dar conta de explicar as experiências educativas que nós achamos que não são experiências educativas, mas que são.
No que se refere ao primeiro caso que selecionei, a autora comenta sobre uma etnografia feita por Eder e colegas (1995) numa “middle school” (provavelmente nos Estados Unidos), com observações no refeitório e em outros ambientes informais, que mostrou como os distintos comportamentos dentro dos grupos de meninas e meninos contribuem para as desigualdades de gênero. Os autores “salientaram a preocupação excessiva com esportes atléticos competitivos dentro de subculturas masculinas, uma ênfase na resistência que leva jovens adolescentes a negar suas emoções ‘mais suaves’. Isto tem um ‘efeito de transbordamento’, pois os meninos aprendem a objetivar jovens mulheres e podem vir a ver o mundo heterossexual como outro campo no qual eles podem ‘fazer pontos’ (ver também Thorne & Luria 1986, Adler & Adler, 1998)” (p. 269).
Quanto ao outro caso que escolhi, a autora afirma que uma hipótese é que meninos, que têm menos prática do que suas colegas meninas em se relacionar intimamente, por não vivenciarem essa experiência dentre seu grupo de amigos, devem fazer o que equivale a um grande salto de desenvolvimento quando estão começando a se relacionar afetivamente com o sexo oposto. “Por exemplo, examinando as mensagens que os alunos escreveram uns aos outros nos anuários da highschool (Giordano et al. 2001)”, ela e outros pesquisadores observaram, no caso dos meninos, “diferenças marcantes entre o ‘discurso voltado para os amigos’ (ex., ‘você é um lutador nojento:::’) e aquele voltado para parceiras românticas (ex., ‘você é linda de tantas maneiras que me levaria uma vida inteira para expressá-las em palavras:::’). Em contraste, a linguagem usada por jovens meninas em mensagens para amigas íntimas e namorados é mais semelhante em forma e conteúdo. Na medida em que o contexto romântico fornece a única oportunidade dos meninos se expressarem e, mais amplamente, de se relacionarem desta forma íntima, em alguns aspectos jovens do sexo masculino podem ser considerados mais dependentes dessas relações que as adolescentes, que têm amigas próximas para conversa íntima e apoio social” (p. 271).
A consequência disso, segundo a autora, é que “esta qualidade de singularidade pode figurar na etiologia do mais negativo e, às vezes, nas dinâmicas relacionais de gênero que também surgem em conexão com envolvimentos românticos [perseguição, esforços de controle intrusivo, violência e coisas do tipo (ver Hagan & Foster 2001)]”. Como ela já havia sugerido no artigo, faz-se necessário pesquisar as condutas dentro dos relacionamentos “(por exemplo, homens podem depender ou depender muito de suas relações românticas em certos aspectos e, ainda, exercer mais poder dentro de um determinado relacionamento)” (p. 271).
Como se percebe, “é razoável esperar que essas diferenças”, que aparecem mais marcadamente na fase adulta, “tenham paralelos importantes nos relacionamentos forjados no início da vida” (p. 271). Através desses exemplos, que parecem bobos, podemos observar como comportamentos considerados “inocentes” e sem importância já estão funcionando invariavelmente como base para a construção das identidades de gênero em meninas e meninos e para a produção e a re-produção das desigualdades de gênero na nossa sociedade.
E a “educação dos sentidos” é isto: consiste naquela educação que não percebemos que é educação e, portanto, acabamos por tomar como “natural” o que foi socialmente construído.
Antes de responsabilizarmos os hormônios e a natureza por ações e reações de mulheres e homens, prestemos mais atenção na educação, que constitui uma dimensão analítica privilegiada para explicar as desigualdades de gênero e todas as outras desigualdades encontradas na nossa sociedade.
*Como não se trata de um post acadêmico, a exposição dos casos foi feita de uma maneira bastante simplificada e didática, assim, gostaria de relembrar que o texto de Giordano mobiliza essas e outras questões com maior complexidade e perspicácia. Vale a pena a leitura! Também enfatizo que não sou tradutora e, portanto, considerem livre a tradução desses trechos.
Fontes:
GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud – A educação dos sentidos. São Paulo, Cia. das Letras, 1988.
GIORDANO, Peggy C.. Relationships in Adolescence, in Annu. Rev. Sociol. 2003. 29:257–81.
Bibliografia citada por Giordano:
Adler PA, Adler P. 1998. Peer Power: Preadolescent Culture and Identity.New Brunswick,NJ:RutgersUniv. Press
Eder D, Evans CC, Parker S. 1995. School Talk: Gender and Adolescent Culture.New Brunswick,NJ:RutgersUniv. Press
Giordano PC, Longmore MA, Manning WD. 2001. On the nature and developmental significance of adolescent romantic relationships. In Sociological Studies of Children and Youth, ed. DA Kinney, 8:111–39.New York: Elsevier
Hagan J, Foster H. 2001.Youth violence and the end of adolescence. Am. Sociol. Rev. 66:874–99
Thorne B, Luria Z. 1986. Sexuality and gender in children’s daily worlds. Soc. Problems 33:176–90