Marcelo Serrado e o perigo do beijo gay

Texto de Marcelo Spitzner.

Minha estreia no Blogueiras Feministas acontece numa semana em que declarações polêmicas são emitidas por pessoas conhecidas a respeito das relações homoafetivas. A primeira e sobre a qual pretendo discorrer nesse post, é a declaração de Marcelo Serrado, ator que interpreta o personagem gay Crodoaldo Valério, o Crô, da novela Fina Estampa, de que é contra beijo gay na novela das 21h. A outra declaração polêmica vem de um lugar de onde muitos já estamos acostumados a ouvir coisa semelhante, do Vaticano. O Papa Bento XVI numa reunião com o corpo diplomático do Vaticano, embaixadores de 180 países que têm relações de Estado com a Santa Sé, disse formalmente que as relações homossexuais representam um perigo para a humanidade e que a família tradicional (leia-se pai e mãe) é o lugar do verdadeiro acolhimento dos filhos. O problema dessa declaração, ao meu ver, é que ela além do peso espiritual para os cristãos, se reveste de um caráter político. Mas, esse é assunto para outro texto. Vamos ao caso Marcelo Serrado.

Crodoaldo, personagem gay interpretado por Marcelo Serrado na novela Fina Estampa. (TV Globo/Divulgação/João Miguel Júnior)

Um trecho da declaração de Marcelo Serrado à Folha de São Paulo diz o seguinte: “Não quero que minha filha [Catarina, 7] esteja em casa vendo beijo gay às nove da noite [na TV]. Que passe às 23h30.”

A reação geral das pessoas e militantes LGBT´s, bem como todos que defendem o direito de igualdade, da livre expressão do amor foi de surpresa e indignação. O que primeiro me veio à mente é que a declaração feita pelo ator traz em si informações sobre as quais podemos fazer algumas inferências. Que os linguistas e semanticistas me ajudem e corrijam se me equivoco!

1- a filha do ator vê a novela das 21h, mesmo que circunstancialmente;

2- a filha do artista acompanha o enredo da novela das 21h bem como o caráter dos personagens;

3- Catarina, embora até o momento “protegida” de um eventual beijo gay, assiste a todo tipo de imoralidade e falta de ética que se desenrola na novela.

4- o ator se importa que sua filha veja beijo gay na novela, mas não liga que ela aprenda a viver com o pior e o mais baixo que o ser humano pode chegar e prefere privá-la da descoberta de que o amor pode romper as fronteiras das normas estabelecidas por uma sociedade machista e homofóbica.

Marcela (Luciana Vendramini) e Marina (Giselle Tigre) trocam beijo na novela Amor e Revolução (SBT/Divulgação/Lourival Ribeiro)

As inferências podem ser óbvias, mas extremamente necessárias para determinar o tipo de mentalidade que, não raramente, corre pelo nosso país.

Muitos expectadores de novelas, e de outros programas em geral, não questionam o efeito da divulgação da violência, de corrupção, de todo tipo de infidelidade, deslealdade, atitudes antiéticas, mas não consegue aceitar que o afeto e o amor entre pessoas do mesmo sexo apareça num capítulo do folhetim. Uma grande parcela da população pensa que a forma de proteger o bem-estar da família brasileira é manter os seus olhos distantes de um beijo gay sem se importar que todo um imaginário escuso se aloje na mentalidade de crianças e adultos.

Claro que não podemos relacionar a violência urbana às novelas e aos programas televisivos, mas não podemos ignorar que eles a banalizam e fazem da desgraça um espetáculo para consumirmos com os olhos marejados e um pote de pipoca nas mãos. Nesse momento, lembro-me de tragédias como a do Realengo em que mais do que a dor e as causas do fato, se esquadrinhava tudo o que pudesse dar àquele momento tão triste um cenário e um enredo cinematográfico hollywoodiano.

Day Kiss by Joe Phillips - paródia à fotografia de Jorgensen, cartoon
Day Kiss, ilustração Joe Phillips – paródia à foto clássica de Victor Jorgensen.

A declaração de Marcelo Serrado me faz pensar como para muitas pessoas é mais palatável um personagem cúmplice de barbaridades, como o é o personagem Crô – salvo suas ambigüidades e contradições, não é um personagem de todo mal, ri e se alegra com boas notícias, se sensibiliza com dores alheias -, do que um personagem que ame, beije, ria, cante, pule, se joge na grama com seu namorado.

Depois da reação de LGBT´s e seus pares nas redes sociais, Serrado tentou se retratar dizendo não ser homofóbico e que até tem amigos gays. Argumento bem conhecido de quem é gay ou sofre racismo: não sou racista, até tenho amigo negro.

Não diria que o ator seja homofóbico nem que um beijo gay na novela acabaria com a homofobia, mas que, certamente, ele está imerso numa sociedade que pensa que o diferente é sempre um perigo.

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Marcelo Spitzner: Sei lá que sou eu? Sei la! cumprindo os fados, num mundo de maldades e pecados, sou mais um mau, sou mais um pecador… (Florbela Espanca). Escreve no blog Ditos e Contraditos.