Piriguetes e o comportamento sexual feminino

Em janeiro, o jornalista Ricardo Donisete do portal IG Delas nos entrevistou por email para uma matéria sobre a onda na internet, especialmente nas redes sociais, que dissemina montagens de fotos que dividem as mulheres em “biscates” e “pra casar”: O comportamento sexual de uma piriguete.

Gostamos de colaborar com outros blogs e veículos de mídia na internet porque isso traz novos leitores e também, uma possibilidade de desmitifcar o feminismo para mais pessoas. Em dezembro de 2011, a Srta. Bia deu uma entrevista falando sobre nosso blog e nosso grupo para o IG Jovem: O “Girl Power” toma a internet.

Marcha das Vadias em São Paulo. Foto de Marcel Maia no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Dessa vez, foram feitas perguntas sobre o preconceito em relação ao comportamento sexual das mulheres. Por que esse tipo de preconceito persiste? Por que uma mulher sexualmente liberada ainda assusta parte da população? Por outro lado, entender se a exploração sexual da imagem da mulher na TV e na publicidade não estimulam esse preconceito. Elaboramos as respostas coletivamente e o resultado reflete várias posições do nosso grupo. Por isso, compartilhamos aqui nossas respostas completas que foram enviadas ao jornalista:

– Sobre essa onda que falei antes, a que divide mulheres entre “biscates” e para “casar”, você consegue imaginar por que um preconceito tão antigo ainda persiste? O curioso é que não apenas homens divulgam essas ideias, mas mulheres também.

Homens e mulheres são educados na mesma sociedade. Os valores ensinados são os mesmos. Então, se uma “biscate” não deve ser valorizada por um homem, também não deve ser valorizada por outras mulheres. Repetimos padrões, mesmo que eles sejam benéficos apenas para os homens e não para mulheres. Como exemplo: homens podem ter casos extraconjugais que serão chamados de garanhões irresistíveis e não de “biscates”. Pensamentos e atitudes machistas podem ser protagonizados tanto por homens quanto por mulheres.

Entretanto, não é estranho que esse tipo de preconceito ainda exista. Preconceitos mais antigos que este, como o racismo, persistem. Não há relação direta com o tempo, mas sim com o sistema de valores e classificações com os quais operamos. A nossa visão de mundo é construída por meio da cultura. Cada elemento construído por esta visão de mundo também ajuda a perpetuá-la, mantê-la operando. Por isso os preconceitos são difíceis de serem quebrados. E essa dicotomia “biscate” x “para casar” pode ser uma estratégia para invalidar qualquer libertação sexual da mulher. Uma liberdade que só ganhou uma discussão séria a partir do surgimento da pílula anticoncepcional.

E um ps.: nós questionamos se esse preconceito é “tão antigo” assim. Essa ideia de mulher casta, virgem, para casar, nem sempre fez parte da moral sexual da sociedade de forma generalizada. Entre as pessoas mais pobres, por exemplo, na Europa antes do século 19, certamente não havia essa força toda da virgindade, castidade, casamento, etc. porque as uniões não eram, como entre nobres, contratos de troca de bens – já que essas pessoas não tinham bens materiais. Só que a história é escrita pelos grupos dominantes e isso acaba criando a impressão de que a experiência destes grupos explica a sociedade como um todo.

– Uma mulher livre sexualmente ainda assusta parte da sociedade, que tem dificuldade de ver uma mulher como protagonista do prazer dela?

Assusta para quem não compreende que uma mulher pode ter desejos e fantasias sexuais. A imagem da mulher casta, que só faz sexo para agradar o homem, é muito forte no imaginário das pessoas. Uma mulher que tem autonomia sobre seu corpo e seu prazer destoa dos padrões ensinados por nossa cultura, por causa disso deve ser julgada e classificada como inferior as mulheres que não tem o mesmo comportamento. Essa mulher está subvertendo a ordem estabelecida. Sua atitude questiona a ideia de que mulher não se interessa por sexo, que só faz sexo por amor e que a sua “natureza” não impõe a ela uma “necessidade” de fazer sexo, como constantemente escutamos dizer a respeito dos homens.

E, se observarmos, parece que nossa sociedade tem dificuldade de ver uma mulher como protagonista de qualquer coisa, por mais exemplos que tenhamos de mulheres em posições de comando e liderança. Isso significa muito em termos da visão de mundo que forma e é formada em atitudes como um comercial para TV (mas poderia ser o currículo escolar, a novela, a obra de literatura, o vestibular, a legislação, um julgamento, blogs, uma bronca ou ausência de bronca numa criança, etc.).

Sendo o sexo ainda um grande tabu, mesmo no Brasil onde a cultura parece ser bem sexualizada, isso fica ainda mais forte. Existe uma relação histórica específica das sociedades ocidentais judaico-cristãs que determina que o prazer sexual é masculino e a mulher é apenas o repositório da procriação. No Brasil dos dias de hoje o prazer da mulher até é aceito, mas somente em algumas condições, em alguns padrões – que são propagados, por exemplo, nos discursos reforçados das revistas “femininas”. Neste padrão aceito está o requisito de que o prazer dela precisa estar ligado ao prazer do companheiro homem (já que não existem lésbicas, né). A mulher enquanto protagonista é mal-vista. Enquanto protagonista do desejo sexual ainda mais!

– Por outro lado, parte das mulheres não contribuem com esse pensamento ao se expor demais para agradar aos homens? O sexo também não tem ocupado demais a vida de algumas delas, com todas relações sendo mediadas por ele, inclusive no trabalho?

Será que a mulher realmente se expõe para agradar aos homens? Há algum problema imediato em querer agradar o outro? As mulheres contribuem com esse pensamento exatamente na mesma medida que os homens. Nem mais, nem menos. No trabalho, se uma mulher tem relações mediadas pelo sexo é preciso que haja uma pessoa do outro lado com quem ela possa estabelecer essa relação. Como dissemos na primeira pergunta, estamos inseridos no mesmo meio social. E isso não tem nada a ver com se expor demais ou de menos. Porque não existe “se expor demais”, senão estamos automaticamente aceitando que é preciso controlar a sexualidade das mulheres. O sexo tem ocupado muito a vida de todos. Isso tem a ver com uma visão de mundo ensinada e mantida por uma série de estruturas sociais complexas como: a educação, o direito, a economia, a família, a religião, etc. Estamos falando de um mundo em que as mulheres não podem ter sua sexualidade livre como bem entenderem. Enquanto aos homens até que isso é permitido numa escala um pouco maior.

Talvez a questão esteja na linha tênue que separa a vontade de um padrão construído socialmente. Afinal, mulheres são ensinadas de que ter beleza é ter valor. Portanto, devem investir muito em sua beleza, que pode ser um elemento para competir num mercado que desvaloriza a mulher. Qual o problema? Enquanto for uma vontade consciente agradar aos homens ou outras mulheres, o que se há de fazer? Porém, essa vontade pode sofrer influências dos padrões sociais ou de mudanças, como o momento em que as mulheres passam a expor seus desejos ameaçando um mundo em que mulheres eram seres passivos sexualmente.

[+} As blogueiras do Biscate Social Club também publicaram suas respostas completas: O que achamos da matéria do Delas (IG).