Jesus me ama, mesmo eu sendo mulher?

Gostaria de falar um pouco a respeito de como a Bíblia, que chegou até nós, e as religiões patriarcais segregam a imagem da mulher a uma posição de fragilidade, incapacidade e submissão. A Bíblia reflete uma escravidão ideológica ao sistema patriarcal, institucionalizada sob explicações ilógicas, ao que chamamos de fé.

Já não é segredo para ninguém que religiões, de maneira geral, incomodam-me, profundamente, porque, acredito que, a partir do momento em que admitimos que uma explicação não relacionada a questões éticas e/ou racionais sejam aplicáveis com fervor, estamos abrindo precedência para atitudes contra o humano, conforme acompanhamos ao longo de nossa História.

Foto de Hussein Malla/AP no Bol Notícias

A culpa, certamente não é da fé em si, (que ao contrário do que alguns dizem não move montanhas) mas, dos humanos que a tomam como uma forma de legitimar segregações infundadas. Se todos fôssemos pessoas justas, racionais e com senso ético não aceitaríamos, por exemplo, que as religiões tivessem estatuto político, como ocorre em muitos países árabes e aqui no Brasil das desnudas, onde assistimos ao crescimento estrondoso de uma bancada religiosa e preconceituosa.

Eles se articulam para manipular questões que vão além da fé, enquanto nós permanecemos de braços cruzados, como mandaria o bom espírito cristão. Jesus ofereceu a outra face e, nós, como bons cordeirinhos, estamos oferecendo o corpo inteiro a humanos que se dizem tomados pela fé. Jesus negou-se a assumir o Governo na Terra, mas @s religios@s de paletó de nosso Congresso não tiveram essa sobriedade.

Gostaria que fizessem como eu, isto é, assumissem que lutam por uma causa política e parassem de usar a fé como passaporte para o domínio do mundo. A terra prometida desse povo chama-se Brasília. Contudo, não podemos negar que, no Brasil, a atuação da bancada religiosa é legitimada democraticamente. São @s “dotad@s da boa fé” que permitem e fomentam tal contexto político. Isso ocorre porque a religião, muitas vezes, não enxerga suas próprias limitações, estimulando @s convertid@s a difundirem sua fé, como a um ideal político. E, voilá, temos o pretexto ideal para justificar uma série de infortúnios que humanos aplicam a outros humanos porque assim deliberaram que seria.

Sou contrária a religiões, mas não a religiosos que professem sua fé enquanto fé. Não me incomoda que cada um saiba levar da melhor forma possível suas crenças. Pois, mesmo o ato de não acreditar, na verdade, implica acreditar no não-credo. Portanto, não me sinto no direito de sancionar o sistema alheio de crenças, mas faço questão de sancionar a fé alheia, desde que ela interfira no meu corpo político.

Comecei o texto com o título, “Jesus me ama, mesmo eu sendo mulher?”, porque percebo que as religiões de base cristã, ao tomarem a Bíblia como seu principal livro para estudos, absorvem todo um sistema machista e preconceituoso, depreendido não só pelos casos narrados, mas também pela filosofia sexista de relações inter-familiares e sociais incentivada.

Capa do livro A Tecelã, de Barbara Koltuv

A analista junguiana, Barbara Black Koltuv, em A tecelã (Ed. Cultrix, 1997), analisa alguns episódios bíblicos em intersecção com mitos greco-latinos, para interpretar como os sistemas religiosos oprimem o desenvolvimento da psicologia feminina e, consequentemente, masculina. Ela começa seu insight afirmando a singularidade de cada mulher perante um sistema que tende a massificá-la a funções estereotipadas, tais como a maternidade, o casamento patriarcal e a manutenção da harmonia das relações familiares.

Desse modo, teríamos posições binárias para encaixar todas as mulheres, ou seríamos “adequadas” para as funções do sistema, ou “inadequadas” para as mesmas. Trocando em miúdos, trata-se da velha ladainha que determina se uma mulher “serve para casar” ou “serve apenas para sexo”. Não bastasse estimular o rebaixamento da mulher perante os homens de sua vida, aprendemos, desde cedo, que “meninas boas” não devem se misturar com “meninas más” e, assim, levamos adiante uma cultura de segregação e violência mútua. A autora explica:

 As mulheres vêm sofrendo há muito tempo em secreto isolamento, separadas umas das outras, mãe e filha, irmã e amiga, numa cultura patriarcalmente definida. Fomos separadas em garotas boas e más, bonitas e feias, velhas e moças, casadas e solteiras, ricas e pobres, e assim por diante. (p. 55, §1)

Deus não te protege de DSTs! Não há prazer maior do que obedecer a recomendações médicas. Imagem compartilhada no Facebook.

A violência religiosa cristã encabeça sentimentos que visam controlar a “disponibilidade” da mulher para o homem, ao estabelecer a virgindade e a maternidade como elementos de caráter a serem enaltecidos. O corpo da mulher é tomado sempre como um meio para atingir um bem maior.

Virgem Maria, por exemplo, corresponde à imagem ideal para a mulher bíblica. Seu corpo, seus prazeres, sua sexualidade foram totalmente descartados por um bem maior, uma gestação, e ela, passivamente, aceita tais desígnios. Ela não é, portanto, um sujeito autônomo, mas um objeto agregado como essencial para atingir um fim maior, o mesmo ocorrendo com a personagem da fiel seguidora de Jesus, Maria Madalena. Em suma, são os homens bíblicos que promovem as mudanças, enquanto as mulheres aparecem ora como a causa da perdição moral de um povo, ora como um objeto possibilitador do domínio masculino.

Tomando tal mentalidade, podemos entender por que o aborto é visto com tamanha revolta por certos membros de nossa sociedade. A mulher que escolhe abdicar do feto, no fundo, está se negando a participar da ideologia de que seu corpo pertence ao outro e, mais, de que o feto teria maior importância social do que ela mesma.

De toda forma, não é fácil suportar o peso da escolha raciocinada. Não é fácil aceitar e praticar a ideia radical de que mulheres são seres humanos, assim como os homens, logo, agentes de seus destinos, traçados por meio de seus corpos. Não é fácil identificar que um dos sistemas religiosos mais aceitos e praticados perpetua pensamentos sexistas, que apresentam a mulher como objeto mediador de bens sociais e o homem como o realizador dos mesmos. Porém, pior do que observar tais pensamentos indexados às relações sociais é vê-los sair do campo da fé para o da ação política. Urge assumirmos que religião e política nunca foram, não são e jamais serão bons parceiros, sobretudo, no que diz respeito à proposição de políticas para mulheres. Estado laico já!