Famílias formadas por lésbicas: elas existem!

Você nunca viu na novela brasileira, nem nos programas humorísticos de auditório, mas elas existem: lésbicas que decidem constituir família. Nascidas das mais diferentes situações e criadas nos mais diversos formatos elas estão aí, contrariando as estreitas expectativas sociais enraizadas na nossa cultura.

Sapatão, lésbica, caminhoneira, entendida. São muitos os nomes para o mesmo “fenômeno”: a mulher que deseja se relacionar sexualmente/afetivamente com outra(s) mulher(es) e decide viver de acordo com essa vontade*. Apesar da enorme quantidade de nomes, a visão sobre as lésbicas, de modo geral, ainda é muito restrita.

Somos vistas, no senso comum, como mulheres masculinizadas, promíscuas, indignas de confiança, pra dizer o mínimo. Também temos que lidar com aquela imagem da lésbica como fruto do fracasso masculino – aquela mulher que nenhum homem conseguiu satisfazer. A pressão da sociedade é pesada – e por vezes, violenta. Em alguns países existe a cultura do estupro corretivo. As estatísticas brasileiras mostram um preocupante incremento da violência letal nos último 5 anos, aumentando para 9 “lesbicídios” por ano – o dobro da média anual nas ultimas três décadas.

Ou seja: além de ser uma visão restrita, há uma carga muito grande de valores negativos que estão ligados à lesbiandade. Isso tudo já é suficientemente complicado para que uma lésbica adulta, dona do seu corpo e de suas vontades, assuma sua identidade perante as pessoas. Por isso que, compreensivelmente, muitas lésbicas passam a vida toda sem se assumirem publicamente.

Mas e quando as lésbicas, diante de tudo isso, resolvem ser mães de família? Como é assumir isso num contexto familiar quando sua decisão tem impacto sobre uma pessoa em formação – uma criança, um adolescente? Se é difícil para adultos, como as crianças vão lidar com isso?

E a primeira reação que recebemos de terceiros é: “Nossa, mas e o seu filho, não vai sofrer com o preconceito?”.  Aí eu paro e respiro fundo. Porque né, parece que os filhos nascem num mundo super acolhedor – leia-se neutro – e você, lésbica, é que está apresentando o lado podre do mundo pra eles – o desvio comportamental.

Daí eu respondo – sim, vai sofrer! Meu filho vai sofrer do mesmo jeito que eu sofria na infância por ser magricela, feia, ou fora de qualquer modelo estúpido de normalidade imposto pela sociedade. Vai sofrer porque a sociedade não é neutra, ela é tensa, ela não é pacífica, é segregadora. É machista, homofóbica e beligerante. Mas ninguém é obrigado a compactuar com tudo isso, com esses modelos pré-concebidos.

A felicidade não tem a ver com essas imposições sociais – tem a ver com amor e aceitação. Racismo é uma imposição social? Amor e aceitação. Homofobia? Amor e aceitação. Transfobia? Amor e aceitação. Gordofobia? Amor e aceitação. É assim que se combate a dor do preconceito – qualquer que ele seja. Não é fingindo que o preconceito é normal, não é se adaptando ao que está colocado – é vivendo, sambando, amando – é criando a harmonia onde antes não havia. É a sua existência que está em jogo – e sua simples existência é digna.

Adriana e Munira com seus filhos, registrados com duas mães. Foto: Mateus Mondini/ G1.

Existem infinitas possibilidades de famílias formadas por lésbicas e que merecem ser reconhecidas: mulheres que assumiram a lesbiandade após relacionamentos heterossexuais; mulheres que são lésbicas desde que se entendem por gente e resolvem criar filhos sozinhas, lésbicas que procuram a inseminação artificial, mulheres que se casam com companheiras que têm filhos de outros relacionamentos, e outras tantas formações. E é preciso que exista espaço para que elas sejam devidamente retratadas na nossa televisão, em novelas e seriados brasileiros, para evitar a atual tirania do discurso único (e deturpado) sobre as lésbicas.

No atual contexto social brasileiro, as famílias assumidamente lésbicas colaboram – ainda que involuntariamente – para a aceitação da lesbiandade. Quando a realidade lésbica faz parte da vida de uma criança, a escola passa a pensar sobre o tema, os vizinhos passam a refletir, os familiares passam por uma transformação e há todo um movimento de mudança que vale a pena ser experimentado. Existe, sim, o conflito, e ele se manifesta de formas absurdas, mas no final, há uma harmonia. Porque no final, tudo isso se trata de amor e aceitação. Onde há amor, há sentido, e vale a pena.

Esse post se soma à militância pelo Dia da Visibilidade Lésbica (29 de agosto) – para que sejamos tratadas com respeito e dignidade. O mais recente caso de violência contra lésbicas registrado pelos jornais foi o crime cometido no dia 24 de agosto, em Camçari (BA). Lamentamos pelo ocorrido e esperamos que as autoridades façam uma rigorosa apuração do caso, com a devida punição dos agressores. E que aproveitem para atuar também de modo preventivo, educando as pessoas para o respeito e para a diversidade.

*Nota: a definição de lésbica aqui não pretende ser um tratado acadêmico – quer apenas delimitar o foco do texto, que vai tratar de mulheres em situação de lesbiandade, sejam elas lésbicas, bissexuais em relacionamento com mulher ou qualquer outro termo que dê conta dessa situação homoafetiva.