Mulheres não têm sobrenomes

Sempre fui uma pessoa bastante interessada por nomes e sobrenomes, não sei o motivo ao certo. Talvez porque carregamos estas letras, que formam sílabas e sons, ao longo da vida e que fazem parte das nossas identidades, de onde e de quem viemos, do que somos e vamo-nos tornando. Para um grupo social, como no caso d@s trans*, o nome de nascimento também pode ser motivo de bastante dor e angústia, fator que @s leva a reivindicar os nomes que bem escolherem.

Desde criança, reparo em sobrenomes e, principalmente, nos sobrenomes das mulheres cissexuais casadas com homens cissexuais. Olho também para minha própria família, para os sobrenomes que resolvemos passar adiante e para aqueles que escolhemos deixar esquecidos em algum rincão da História.

Naquela época, eu costumava operar o seguinte raciocínio: em vez de eu ter o sobrenome duplo da família do meu pai – que tenho – eu poderia ter um sobrenome por parte de pai e outro por parte de mãe, porque assim seria mais equitativo, afinal, nasci da união de duas pessoas. E, também, seria igualitário, plenamente “justo”. Na minha cabeça infante, mamãe e papai estariam quites.

Com o tempo e, ainda na infância, fui ponderando que o sobrenome da minha mãe “de solteira” é o sobrenome do pai dela; o sobrenome do pai dela, meu avô, é o sobrenome do pai dele. Assim como os sobrenomes das minhas duas avós advêm de seus pais e não de suas mães, cujos sobrenomes também são de seus respectivos pais. E, assim, infinitamente.

O aperto no peito e o nó na garganta ao concluir: nós, mulheres, não temos sobrenomes. Parecia não haver saída para tamanha descoberta e decepção…

(Não apenas o sobrenome: até há pouco tempo, não tínhamos direito à herança, mas este é um assunto para outro post)

Nuvem de tags feita com nomes e sobrenomes de participantes do grupo de discussão das Blogueiras Feministas. Produzida via wordle.net

Nome importa, sim. E como! Se compramos um terreno ou um carro, a primeira medida a ser tomada consiste em marcar a nova aquisição com o nome e o sobrenome do mais recente proprietário, para indicar que aquilo agora lhe pertence. Tradicionalmente, é isso que acontece com a troca de mulheres na instituição matrimonial: a filha, propriedade do pai, passa a ser propriedade do marido e de sua respectiva família.

Segundo a Wikipedia, “é interessante acrescentar que no Brasil, até o Código Civil de 2002, somente as mulheres poderiam adquirir o sobrenome do cônjuge. Após a nova edição do diploma legal, o marido passou também a poder acrescentar ao seu nome o sobrenome da mulher, cabendo ao casal esta decisão”. Não precisamos nos aprofundar tanto no assunto para perceber que, no caso brasileiro, a lei no que se refere aos sobrenomes de cônjuges e seus filhos está mais livre que antigamente e, até mesmo, menos sexista do que em outros países, inclusive naqueles com menores índices de machismo do que aqui. No Brasil, existe a possibilidade de negociação do casal, diferentemente de lugares onde as mulheres devem abdicar do “sobrenome de solteira”, assumindo apenas o sobrenome do marido, ou que acatam o sobrenome do marido e colocam um hífen ligando ao seu “sobrenome de solteira” (tenho arrepios dessa expressão!).

Em terras brasileiras, portanto, se o casal possuir filhos, existe mais liberdade para a escolha de seus sobrenomes do que no caso da Alemanha, por exemplo, onde os filhos devem receber apenas um único sobrenome. Na “livre escolha” entre o sobrenome do pai e o da mãe, preciso falar qual é o mais comum por lá?

Mas mesmo com esta aparente liberdade legal de escolha no Brasil, o que eu observo? Mulheres da minha idade e até mais novas (ou seja, de seus 20 a 30 anos), honradas de se casarem e de, prontamente, assumirem os sobrenomes dos maridos. Parece motivo de orgulho acrescentar o novo nome no Facebook e em outras redes sociais, para que todos possam ver que estão casadas e, até mesmo, bem de vida. Mulheres que cresceram comigo, outras que conheci pela vida, algumas que se mostram independentes, aparentemente libertas das amarras mais visíveis do patriarcado, como o sobrenome do marido. Uma delas, socióloga, justificou-se com algo do tipo ao discorrer sobre o casamento: “É que nós queremos fundar uma família, e eu acho importante um sobrenome em comum. Eu podia pegar o meu, mas é que, pela tradição, ainda é esquisito pegar o nome da mulher, então decidimos que seria o dele”.

Para mim, esquisito é viver a vida inteira com um nome que você gosta, ou que se acostumou a gostar, e mudá-lo de uma hora para outra. Já ouvi vários homens dizendo: “Ah, mas foi ela que quis”. As pessoas não “querem” e não tomam decisões baseadas no nada, não é mesmo? Por que será que elas querem adotar o sobrenome do marido? E por que será que os maridos fazem cara feia a simples menção do contrário? Até onde eu sei, não houve gerações e gerações de homens que adquiriram o sobrenome de suas esposas na mesma porcentagem de que esposas o fizeram para concluirmos que implica uma escolha pessoal das mulheres ao se decidirem por manter a tradição. Não se trata de escolha pessoal, mas de um machismo profundamente arraigado em nossa sociedade, apenas reprodução do que ocorreu na geração de nossas mães, de nossas avós, bisavós, tataravós etc. E, ainda, uma das formas mais explícitas de perpetuar o machismo. Afinal, está no nome e o nome já diz coisas o suficiente.

Além disso, com a história do sobrenome único e paterno, podemo-nos deparar com inúmeras situações nas quais o pai abandonou a família, não tem contato há anos com os filhos, mas é o sobrenome deste pai ausente que identifica toda a prole, embora seja a mãe que os tenha criado e custeado tudo que os envolvem. Nem existem laços afetivos e materiais, mas um dos mais fortes, que é o nome, está mais do que em evidência.

Na minha vida, se um dia eu vier a me casar, a me submeter a essa instituição tão antiga e querer, como disseram minhas colegas, “fundar uma família”, acredito que não vou precisar de nenhum sobrenome para tanto, apenas gostar do meu companheiro, querer bem. Talvez um lugar para morar, com alguns móveis… mas, principalmente, há de existir amor. Por isso que a noção de família na qual eu acredito é inclusiva: héteros, bi, homossexuais etc, porque apenas o sentimento importa. Se eu não quero adotar o sobrenome dele, também não espero que ele adote o meu e tudo bem. Se houver vontade e desejo, enquanto o relacionamento durar, seremos uma família independente disso.

“Porque é tradição”. Tradição que me reduz, que me marca como um bem de troca, que me torna propriedade alheia e não liberta, eu não quero.