As mulheres formidáveis de Ken Follet: Os Pilares da Terra

Fico muito intrigada com as discussões a respeito de personagens femininos em filmes e livros: discutem-se suas trajetórias, suas ações e motivações, suas possibilidades. Alguns afirmam que são personagens feministas, outros dizem que não. Katniss Everdeen, a princesa Merida, Lisbeth Salander andaram aparecendo por aqui e em espaços de discussão variados porque chamaram a atenção, foram sucesso e discutiu-se muito se eram representativas de alguma forma para o feminismo.

A meus olhos todas têm em comum, acima de tudo, o temperamento forte e a ânsia de ir atrás do que lhes interessa, fugir do que é convencional e do que é esperado como atitude “normal”: Katniss lutando pela sua sobrevivência na arena e no Distrito 12, lutando também pela família; Merida brigando para poder escolher se e com quem vai se casar e o que vai fazer na vida; Lisbeth buscando não a aceitação da sociedade, a complacência, mas a justiça.

Os Pilares da Terra é uma minissérie lançada em 2010 com base no best-seller homônimo escrito por Ken Follet. A sinopse me atraiu de cara: durante a construção de uma catedral na Inglaterra do século XII várias vidas e vários interesses se entrelaçam. Minha supresa foi encontrar na história (que só agora começo a ler, então que fique claro que falo apenas da série e nem ouso comparar as duas versões, a escrita e a filmada) um grupo de mulheres sui generis.

Não poderia dizer que são personagens feministas, tenho receio de incorrer em anacronismo. Mas são figuras femininas de grande força simplesmente porque suas ações são decisivas na trama. Não que elas apareçam só para dar palavras finais, mas todas agem ao longo da história de acordo com seus interesses, enfrentando consequências, se afirmando – cada uma a seu modo. Serão elas os pilares a que o título da obra faz referência?

É importante lembrar que o período em que a história é ambientada é a Idade Média, em que a imagem da mulher era marcada por uma polaridade: de um lado a mulher desejável, devota, submissa, dócil, trabalhadora (se pobre), de outro a bruxa, a mulher fora de controle, desgarrada dos homens e da Igreja, fonte da tentação e do mal. Quem assistiu à versão filmada de O Nome da Rosa se lembra bem do discurso ambivalente sobre a mulher, ilustrado pela imagem de Nossa Senhora e pela aparição da camponesa que se infiltra no monastério.

Evidente que a obra de Ken Follet e o roteiro que resultou na minissérie são obras ficcionais e também é importante lembrar que havia mulheres que de fato fugiam a esse figurino cuidadosamente recomendado. Havia formas de resistência, havia algumas escolhas possíveis (sempre me lembro de uma discussão em uma disciplina da faculdade a respeito de O Retorno de Martin Guerre, obra sensacional de Natalie Zemon Davis: nossa professora nos perguntava sobre as escolhas que Bertrande, a esposa de Martin, o homem que foi embora e retornou, poderia fazer naquele contexto).

Vamos às mulheres de Follet, então (atenção: há spoilers!):

Natalia Wörner em cena da minissérie “Os Pilares da Terra”.

Ellen – vive numa caverna na floresta com o filho, Jack. Com o tempo descobrimos que é perseguida por bruxaria, apesar de ter sido noviça anos atrás. Ela ousa enfrentar os poderes temporais e seculares quando se apaixona por um náufrago misterioso que guarda um segredo político importante e entra em confronto direto com os representantes da Igreja. Em mais de uma cena memorável ela afirma seu poder feminino e aterroriza um grupo de padres e nobres. Ela reúne características indesejáveis a uma mulher e listadas à vontade por obras como o Malleus Malleficarum (O Martelo das Feiticeiras, clássico manual de identificação e caça a bruxas): não é submissa, nunca se casou, exerce sua sexualidade como lhe apraz, não frequenta a igreja, sabe evocar os poderes da natureza e curar. Ou seja: bruxa.

Hayley Atwell em cena de “Os Pilares da Terra”.

Aliena – filha de um conde que é acusado de traição e preso, ela teria como destino natural o casamento arranjado com outro nobre de posses ou poder político. Seu pai permite que ela escolha o homem que quiser, o que a leva a rejeitar um pretendente e a sofrer consequências sérias. Toma as rédeas do próprio destino e promete ao pai que vai recuperar a propriedade e o título da família. Mais adiante auxilia o irmão a conseguir um título de cavaleiro e se estabelece como importante comerciante. Aliena faz concessões importantes em função de seu objetivo maior, que é recuperar o poder da família, mas luta pela pessoa que ama e pelo seu futuro.

Regan – Mulher nobre, da corte, sedenta de poder. Alia-se ao Bispo Waleran para obter o condado de Stirring, antes pertencente ao pai de Aliena, e aproxima-se ora de Stephen, ora de Maud, conforme pode ser favorecida. Possui uma relação doentia com o filho, William, e é claramente a pessoa que comanda a casa, os empregados, o filho e o marido, Percy.  É a vilã clássica. Vai atrás do que quer, faz todo tipo de maquinações e planos mirabolantes, age e coloca a mão na massa se for o caso. Mas é uma vilã, sem dúvida alguma.

Alison Pill como Maud em cena de “Os Pilares da Terra”

Maud – Herdeira do trono inglês após a morte do irmão em um naufrágio e de seu pai, Maud se vê passada para trás pelo primo Stephen. Ela inicia uma reação junto a um grupo de nobres fieis e com apoio do irmão bastardo, Robert de Gloucester. Maud foge para a França, onde continua a orquestrar a resistência ao rei e cria o filho que deverá um dia tomar o trono à força. É uma mulher decidida e chega às raias da crueldade em nome de seu objetivo. Maud foi conhecida, fora da ficção, como Matilda, e o período de guerra que se seguiu à tomada do governo por Stephen foi conhecido como Anarquia. Seu filho Henrique, retratado na minissérie até o início da idade adulta, se casaria mais tarde com a formidável Eleanor de Aquitânia, mulher considerada à frente do seu tempo, promotora da arte e da cultura na França e na Inglaterra e política habilidosa.

Elizabeth – casa-se ainda menina com William Hamleigh, filho de Regan. É violentada, espancada e humilhada pelo marido e pela sogra. Um belo dia toma coragem e revela a seu confessor planos violentos de seu marido que abalariam as pessoas no priorado de Kingsbridge, onde a catedral está sendo construída. Foge de casa, junta-se a Aliena e ajuda a expulsar os Hamleigh de Stirring.

Martha – filha de Tom Builder, o primeiro construtor da catedral, é uma moça doce, quase uma sobrevivente. Atura com galhardia o irmão Alfred, é amiga de Aliena e guarda um segredo fundamental no desfecho da história – ela o revela no momento de decisão, confessando sua culpa por guardá-lo e se desculpando junto aos envolvidos.

Repito aqui: não trato do livro, em absoluto, e imagino que haja uma série de características das mulheres que tenham sido modificadas no roteiro, assim como eventos relatados. A mim não faz mal: foi ótimo ligar a televisão e encontrar em uma história bem contada personagens femininos não necessariamente feministas, mas proeminentes, protagonistas. Chega de damas silenciosas, inertes, apagadas.

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Imagem destacada: Detalhe de miniatura de Boethius no manuscrito francês de The Consolatio Philosophiae (A Consolação da Filosofia), circa 1460–70.