Inserção das mulheres negras nos movimentos sociais

Texto de Silvana Bárbara com colaboração de Juliana Paiva.

Nas últimas décadas, diferentes movimentos sociais emergiram e se destacaram na América Latina. Apesar da diversidade de ideologias, objetivos e da adoção de estratégias distintas, os diferentes grupos partiram de um pressuposto comum:

“[…] De um modo geral, os movimentos sociais contemporâneos trazem consigo o pressuposto de que transformar a realidade não é só modificar a sociedade a partir dos aparelhos do Estado, é modificá-la também ao nível das ações concretas da sociedade civil. Temos então que o Estado, enquanto campo institucional de atuação política privilegiado, e a sociedade civil, com maior força numérica e poder na produção cultural, se interpelam, e vemos surgir esse novo sujeito social que redefine o espaço da cidadania […]” Referência: RODRIGUES & PRADO, Minorias, reconhecimento e a fronteirização de saberes e experiências militantes, pg. 2, 2007.

Neste contexto, aqui se pretende ressaltar o desenvolvimento do Movimento Feminista e do Movimento Negro e, de como ambos foram refratários às questões das mulheres negras. A década de 1970 foi um marco para estas duas formas de mobilizações, pois, é nesse período que ocorreram o ressurgimento do Movimento Feminista e a criação do Movimento Negro Unificado (MNU).

Apesar da inegável importância desses movimentos, desde o início, as mulheres negras se depararam com grandes empecilhos para sua efetiva participação nas duas formas de mobilização. Por um lado, o Movimento Feminista não considerava a relevância das questões raciais, considerando com descaso a luta negra dentro da ação das mulheres. Por sua vez, o Movimento Negro estava muito afastado das demandas e discussões de gênero, além de não propor lutar contra discriminação sofrida pelas mulheres.

Por estas razões, as mulheres negras procuraram criar e consolidar um movimento que atendesse efetivamente às suas demandas. Um espaço coletivo para o compartilhamento de experiências, formulações de pautas reivindicatórias e construções de estratégias de luta. Um movimento de onde seu grito contra a dupla opressão ecoasse e pudesse ser ouvido por todas as pessoas.

Bloco das Mulheres na Luta contra a Violência do Estado, partindo da Praça da Estação. Foto de Fora do Eixo no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Bloco das Mulheres na Luta contra a Violência do Estado, partindo da Praça da Estação. Foto de Fora do Eixo no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Neste contexto, surgiu o Movimento de Mulheres Negras (MMN). As dificuldades enfrentadas foram muitas, inclusive a de se desvincular dos movimentos dos quais vieram. Além de formularem pautas específicas, as mulheres do MMN se viram diante do desafio de fazer com que a sociedade — e militantes de outros movimentos sociais — entendessem sua importância e legitimidade. Pois, muitas vezes as mulheres do MMN se tornaram alvos preferenciais de piadas e críticas; não raro suas manifestações serem ignoradas.

Mas isto não é “coisa das antigas”?

Para quem desconhece a militância das mulheres negras é possível se equivocar e imaginar que, atualmente, essa dificuldade de pautar lutas é coisa do passado, “das antigas”. Afinal, hoje não haveria mais a necessidade de um movimento específico, uma vez que as negras estariam plenamente representadas dentro dos movimentos Negro e Feminista. No entanto, esta não é a realidade.

Infelizmente, ainda há feministas brancas que ignoram o racismo de nossa sociedade ao tratar das questões de gênero. Afirmam que “desconhecem” a questão da dupla opressão e argumentam que as questões raciais podem ser tratadas com eficácia no Movimento Negro ou que são secundárias no Movimento Feminista.

Grande ilusão de feministas que tem como livros de cabeceira apenas os escritos por autoras européias. Obviamente, sem tirar a maestria destas escritoras e líderes feministas — que muito contribuíram para a origem e permanência do Movimento Feminista — mas, o momento é também de acompanhar e se engajar nas falas e reivindicações das feministas negras. De fato, é por todo este “desconhecimento” que o perfil dominante do Movimento Feminista continua sendo o de mulher-branca-classe-média.

Algumas mulheres negras sentem-se pouco à vontade para participar ativamente dentro do Movimento Feminista. Isto é justificável pelo pouco espaço é dado a elas. Por serem alvo de piadas que as desumanizam ou pela dificuldade de colocarem suas pautas dentro do Movimento. Porém, sobretudo, porque não é raro que suas falas recebam pouca atenção das demais feministas.

Além disso, expor o racismo pelo qual sofrem faz lembrar muita coisa vivida que pretendem esquecer. No entanto, é preciso ter em mente que não se pode tentar esquecer uma vida de opressão. E que, se as mulheres negras silenciarem sua indignação e não mostrarem para a sociedade que sofrem o preconceito cruel (que agora ressurge velado), não serão vitoriosas. A luta iniciada por poucas mulheres na década de 1970 deve seguir e se fortalecer a cada dia, lembrando como tudo começou.

Outro problema é chegar à conclusão de que não é apenas no Movimento Feminista que as mulheres negras sentem-se em segundo plano. O próprio Movimento Negro não dá a estas mulheres a oportunidade de defender suas causas. Dentre os poucos grupos do MN atuantes, a minoria tem um núcleo para tratar do movimento de mulheres. Pelo contrário, o machismo ainda está muito presente, principalmente em grupos onde os líderes são africanos, pois trazem consigo sua cultura, por vezes muito machista.

Encontro Geração - Gênero, Raça, Campo e Ação. Foto: Carol Garcia / SECOM - BA no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Encontro Geração – Gênero, Raça, Campo e Ação. Foto: Carol Garcia / SECOM – BA no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Outros movimentos sociais, que apresentam núcleos diversos, também excluem a opressão específica das mulheres negras. Nestes movimentos não é raro acontecer a seguinte divisão: núcleo feminista trata das causas específicas das mulheres; núcleo negro das causas específicas negras. E a mulher negra, que é vítima do machismo e do racismo, simultaneamente, como fica? Não é difícil concluir que fica praticamente esquecida.

Quando ocorre a abertura

O Movimento de Mulheres Negras, que teve início em 1970, trouxe como principal conquista o engajamento destas mulheres em seguir na sua luta e mostrar sua indignação à sociedade. Diante disto, as demais militantes feministas começaram a entender melhor a necessidade de reconhecer a pauta das mulheres negras dentro de suas especificidades. Desta forma, aos poucos, estas mulheres vem sendo inseridas no Movimento Feminista.

Um bom exemplo desta inserção é o caso da Marcha das Vadias de Curitiba. O grupo que existe há três anos e, que no mês de julho, realiza uma grande mobilização feminista nas ruas da cidade, desde seu início procurou pautar as causas negras. Mas, para que isto acontecesse, precisava ter na organização da Marcha mulheres negras que estivessem dispostas a se manifestar pelas suas próprias causas.

Este ano, as organizadoras da Marcha chamaram novamente algumas mulheres negras para participar ativamente da construção do Movimento. Diante dessa abertura, estas mulheres assumiram o compromisso de inserir no grupo as suas lutas. Puderam reconhecer que nele as suas causas seriam tratadas com seriedade e que a abertura concedida foi bastante propícia. Desta forma, está sendo formada dentro da Marcha uma Comissão Negra, com o objetivo de incluir o Feminismo Negro dentro das reflexões e ações do grupo.

Porém, estas aberturas podem não significar muitos avanços, sendo apenas oportunidades de pautar as demandas das mulheres negras, mesmo que lentamente. Toda forma de luta e resistência deve ser colocada visivelmente para o sistema, com o objetivo de que este reconheça que não há exageros em nossas manifestações, pois o racismo é um inimigo contra o qual devemos lutar com a mesma força que combatemos o machismo .

Compreender a trajetória, o desenvolvimento e a atualidade da luta das mulheres negras brasileiras, nas últimas décadas, é essencial para que feministas brancas possam repensar e ultrapassar o feminismo demasiadamente brancocêntrico e classista em um país como o Brasil, de maioria negra e socialmente ainda tão desigual.