Azul é a cor mais quente: o cinema de violência e a falta de representatividade

Texto de J. Oliveira.

O filme “Azul é a cor mais quente” (“La vie d’Adèle” – título original) lançado este ano é inspirado no quadrinho de Julie Maroh  “Le bleu est une couleur chaude“, lançado em 2010.

Cartaz brasileiro do filme "Azul é a cor mais quente" (2013).
Cartaz brasileiro do filme “Azul é a cor mais quente” (2013).

Resumindo muito, o filme se passa na França e trata da história de amor entre uma adolescente, que está descobrindo sua sexualidade, e uma jovem artista.

A Lettícia Leite já publicou nesse espaço um texto sobre as polêmicas envolvendo o filme, quando aconteceu o lançamento na França. Mas gostaria de me aprofundar em algumas questões relacionadas à indústria cinematográfica.

Primeiro, creio que é importante dizer que não li os quadrinhos e fui ver o filme sem ter lido nenhuma crítica ou noticias sobre ele (o que geralmente faço para evitar spoilers e “viciar” minha opinião). Estava bastante curiosa, pois mesmo tentando evitar é impossível não ouvir falar, ainda que superficialmente, sobre a premiação, as críticas e polêmicas envolvendo a tal longa cena de sexo, além do abuso nas filmagens pelo diretor. Não é a toa que o cinema estava lotado.

Falando como uma fã de cinema e do ponto de vista artístico, eu gostei bastante do filme. Achei a trilha sonora incrível e bastante diversa. As cenas de sexo harmonizam com o enredo e, cabe dizer que a cena de cerca de 10 minutos nem pareceu durar tanto (vale ressaltar que o filme tem três horas de duração).

A câmera, sempre bastante próxima das atrizes, e o foco em certas partes do corpo em situações diversas, ao mesmo tempo em que trazem certa sensualidade, naturalizam esse erotismo. Alguns momentos como o close na boca da atriz, que parece sempre comer conversando e de boca aberta,  chegam a ser cômicos. A história é atual, envolvente e a personagem principal Adèle (nome da atriz que foi usado na adaptação, no quadrinho o nome dela é Clémentine), ao mesmo tempo em que reúne alguns clichês,  se mostra única na forma profunda e realista de expressar seus sentimentos e conflitos.

Cartaz de "O Último Tango em Paris" (1972).
Cartaz de “O Último Tango em Paris” (1972).

Elogios feitos, vamos às ressalvas. Falando da filmagem e da repercussão, como feminista não posso fechar os olhos para as denúncias feitas pelas atrizes dos abusos do diretor Abdelatif Kechiche. Além de afastá-las de conhecidos, as gravações eram repetidas à exaustão e, em diversas entrevistas as duas atrizes (heterossexuais) revelaram sentir constrangimento e desconforto com as cenas de sexo e de briga, além da falta de direcionamento e preparação para o que passariam. As duas afirmaram que nunca mais trabalhariam com o diretor.

Infelizmente, a violência contra mulheres por trás das câmeras não é novidade. E, em vários casos, as denúncias são relativizadas como se fossem um pequeno desentendimento entre a equipe. Fácil lembrar da recente declaração do diretor Bernardo Bertolucci admitindo, finalmente, que a famosa cena de sexo anal do filme “O Último Tango em Paris” (1972), filmada entre Marlon Brando e Maria Schneider, que já tinha feito essa denúncia em 2007, se tratava na realidade de um estupro e a humilhação e o choro vistos na tela eram reais.

Cartaz do filme "Lovelace" (2013).
Cartaz do filme “Lovelace” (2013).

Outro filme famoso e de grande bilheteria cuja protagonista passou por diversos tipos de violência é o pornô “Garganta Profunda” (1972). Linda Susan Boreman declarou que foi coagida por seu então marido na época a participar dos filmes e, após sua separação, virou ativista contra a indústria pornográfica. Em 1980, lançou um livro contando sua história, que inspirou o drama “Lovelace” (2013).

Cabe ressaltar que acredito que o problema do machismo e da misoginia se perpetua em todas as indústrias. Seja dentro da indústria pornográfica, ou do cinema em geral, o que precisamos é nos certificar que as mulheres tenham sua autonomia e consentimento respeitados e que não sejam expostas à violência, independente do contexto ou circunstância, além de que o sexo não seja mostrado no cinema apenas para deleite do imaginário masculino machista. O que precisamos é que o erotismo e o sexo representados no cinema não sejam tão limitados, existe inclusive uma linha de trabalho nesse sentido: o pornô feminista.  Para quem tiver interesse em saber mais sobre este assunto, há essa entrevista com a cineasta sueca Erika Lust.

Neste sentido, uma das críticas que a autora dos quadrinhos, que é a base de “Azul é a cor mais quente”, fez em seu blog era que o sexo apresentado no filme é de um pornô heteronormativo.  Relatando risos no cinema na principal cena de sexo, que eu também presenciei, seja por pessoas LGBT que não se convenceram pelas cenas ou por homens fazendo comentários machistas sobre o sexo lésbico, que é trabalhado na pornografia a muito tempo para instigar o imaginário masculino.

A segunda razão, segundo Marie-Hélène, é que Kechiche acaba de lançar um verdadeiro pornô. De acordo com sua crítica, um filme com as duas mulheres se pegando, esperando o cara chegar, seria um pouco mais honesto – ao menos, nesse caso, o dispositivo é claro: é um filme para homens. No caso de Kechiche, o dispositivo-voyeur seria sua “câmera-pau” [em fr. camera-bite] ávida de planos fechados, mesmo que o lance de Kechiche não seja a buceta escancarada (muito pornovulgus), mas a meleca escorrendo do nariz e a boca escancarada de Adèle: “No dossier de imprensa, o grande diretor conta que foi vendo Exarchopoulos engolir uma torta de limão numa padaria que foi dita a famosa ‘é ela’!!!… Razão pela qual o verdadeiro título do filme, na minha opinião, é ‘Dans la bouche D’Adèle’ [Na boca de Adèle].” Referência: As lésbicas podem deixar de lado as políticas de representação? Sobre o filme “Azul é a Cor Mais Quente”, de Adbellatif Kechiche.

Eu entendo que a proposta da tal cena polêmica em especifico é mostrar o descobrimento do sexo lésbico pela protagonista e, particularmente, acho que seria estranho se ela chegasse lá já sabendo de tudo. Mas é impossível negar certo estranhamento com o desenrolar do ato e fico aqui imaginando como deve ter sido esquisito fazer isso usando vaginas artificiais que foram nas filmagens. Só que o problema é mais complexo que isso. O que existe é uma grande falta de representatividade de qualquer grupo que não seja o homem branco, cisgênero e heterossexual nos cinemas e na literatura, televisão, arte e entretenimento no geral. Inclusive, recentemente foi divulgado um infográfico completo (em inglês) demonstrando em números a desigualdade na participação das mulheres no cinema.

Em agosto desse ano, o site IG publicou uma série especial de matérias sobre a participação feminina na indústria cinematográfica mundial, com bons infográficos:

Há anos a indústria norte-americana se apoia em uma lendária regra – mulheres vão menos ao cinema – para justificar o notável desequilíbrio na distribuição de papéis, sobretudo principais. De todos os 4.475 personagens com fala nos cem filmes de maior bilheteria nos EUA em 2012, apenas 28,4% são femininos. Trata-se do pior índice desde 2007, quando o levantamento começou a ser feito pela pesquisadora Stacy L. Smith, da Universidade do Sul da Califórnia. Segundo ela, em apenas dois dos cem filmes avaliados o elenco era majoritariamente feminino. Referência: Com poucos e piores papéis femininos, Hollywood “esquece” mulheres da plateia.

[+] Por trás das câmeras, mulheres lutam por oportunidades iguais em Hollywood.

[+] Retomada amplia espaço, mas mulheres ainda são minoria no cinema brasileiro.

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Apesar de não haver um estudo específico focado na participação das mulheres lésbicas, o fato da maioria dos filmes famosos sobre o tema ter protagonistas heterossexuais já diz muito. E, neste quesito, o filme não trouxe nada de novo. A relação entre Emma e Adèle é bastante heteronormativa e atende a todos os estereótipos atribuídos às relações lésbicas.

É provável que se não tratasse do romance entre duas mulheres (uma lésbica e uma bissexual?), e representadas por duas atrizes que fizeram uma grande trabalho, talvez o filme não tivesse tanta repercussão. Toda a relação sexual e amorosa apresentada foge do que costumamos ver nos filmes mais populares (principalmente americanos). O fato deste filme ser premiado e ter uma grande bilheteria também diz um pouco sobre o momento político que estamos vivendo.

Porém, o que ficou bem claro para mim é precisamos continuar pontuando a questão da representatividade. O mundo LGBT e sua sexualidade é muito mais diverso do que filmes como esse se propõe a mostrar. E já passou da hora de desmitificar o sexo em todas suas formas, principalmente o prazer feminino no cinema. Precisamos que essas histórias sejam contatas através de outras perspectivas e que o sucesso dessas histórias não se dê por meio de polêmicas e de mais violência.