26% ou 65%, o que isso significa para o feminismo? O que isso significa para o ativismo?

Texto de J. Oliveira e Camilla de Magalhães Gomes.

Em setembro de 2013, o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) publicou pesquisa sobre os (não) efeitos/impactos da Lei Maria da Penha na redução dos feminicídios. A pesquisa foi objeto de críticas, seja por causa de sua metodologia, seja por realizar uma análise com pouco tempo de vigência da lei. O fato é que as manchetes da época eram: “Lei Maria da Penha não reduz homicídios de mulheres no Brasil”.

Agora, mais uma pesquisa sobre violência contra mulheres vem à cena. Dentre diversos dados, primeiramente, o resultado que mais ganhou destaque na mídia dizia que 65% das pessoas entrevistadas acreditam que uma mulher merece ser atacada se “usar roupas que mostram o corpo”. O resultado dessa pesquisa trouxe um ganho ao expor uma situação que já nos é tão conhecida. E, da qual já temos alguma ideia sobre sua amplitude, além disso, engajou várias pessoas a se posicionarem condenando a violência contra a mulher. Mas, foi amplamente criticada por conta de possiveis erros metodológicos.

Uma semana depois, o IPEA publicou uma errata, avisando que os números de dois gráficos divulgados foram trocados. Então, as manchetes fazem alarde sobre o erro do estudo, enquanto isso, os detratores do movimento feminista se apressam em dizer que “inventamos” (macomunadas com o IPEA) um país de estupradores. No lugar de procurarem pensar o porquê dessas pesquisas apresentarem erros ou o porquê de dados de violência contra as mulheres serem tão precários — e quando apresentados, envoltos em erros, críticas e desqualificações — correm em dizer que “estão exagerando”.

Violência contra mulher: uma realidade conhecida

Independente da errata do IPEA, nossa realidade não mudou. O que não faltam são histórias de violência para contar. O mito de que o comportamento da mulher vai diminuir os riscos de estupro resulta num julgamento que estamos acostumadas a ouvir todos os dias sobre como devemos nos comportar e pouco se fala com os homens que são, na maioria das vezes, protagonistas dessa violência.

Sentimos na pele todos os dias essa violência, esse controle. Que ainda é agravado por determinadas intersecionalidades. Esses números podem parecer absurdos de inicio, principalmente para as pessoas que são menos expostas a esse tipo de violência. Mas, mais absurda é a realidade. E a própria repercussão da campanha demonstra isso.

Criada pela jornalista Nana Queiroz, a campanha ‘Não Mereço Ser Estuprada’ teve milhares de adesões. Muitas com denuncias de abuso. Mas em seus comentários também era possível ver todo tipo de incitação a violência. Nana Queiroz relatou que recebeu inúmeras ameaças de violência contra ela e sua família. Outras mulheres que participaram da campanha também receberam ameaças de estupro, entre elas a deputada Manuela D’Ávila. A campanha trouxe a tona, inclusive, a dificuldade de se denunciar crimes virtuais.

Até a presidenta Dilma Roussef chegou a se pronunciar, pelo twitter, apoiando a campanha. E algumas pessoas famosas aderiram. A pesquisa também foi tema de discussão numa cena da novela ‘Em Família’ da Rede Globo. Não podemos nos calar e deixar de denunciar esses abusos. Depois da correção do IPEA, as denuncias de crimes virtuais envolvendo ameaças de estupro diminuiram.

Os erros da pesquisa não mudam o resultado geral, especialmente porque alguns dados preocupantes se mantêm, como a concordância de 58,5% dos entrevistados com a ideia de que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. Mesmo considerando o componente da indução nas respostas, numa sociedade com indivíduos que se associam em redes sociais e montam grupos para marcar e encorajar atos violentos contra mulheres, o resultado dessa pesquisa é nada mais do que a confirmação do que vemos diariamente na internet e seu feminicídio 2.0.

Perguntas diretas poderiam mostrar um resultado diferente, afinal o foco desta pesquisa foi exatamente o de demonstrar que crenças relacionadas a violencia contra a mulher estão disseminadas na nossa cultura. Foi uma pesquisa pioneira nesse sentido e certamente precisa ter sua metodologia questionada (assim como qualquer outra pesquisa). Mas, não necessariamente precisa ser avaliada do ponto de vista quantitativo, de forma a representar exatamente as proporções de nossa sociedade. Se formos pensar nesse tipo de amostragem deveríamos pensar também no quão pouco são representativas outras pesquisas ao não apresentar segmentação de dados de acordo com outros grupos que sofrem opressão.

Faltam dados sobre violência de gênero

Quem trabalha com a violência de gênero — no ativismo e na academia —, sabe: dados confiáveis são difíceis de encontrar. Não satisfaz, então, a explicação de um gráfico de cabeça para baixo, não afasta nossa insegurança e nosso incômodo sobre como as pesquisas estão sendo conduzidas.

Não inventamos um país de estupradores, não somos um país de estupradores. Afastada essa crítica vazia, há que se dizer: somos um país machista e o número de estupros é sério e real: o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2013, mostra que o número de estupros no Brasil é maior que o de homicídios. Foram 50.617 casos em 2012 – equivalente a 26,1 estupros por grupo de 100 mil habitantes.

E aí, barulho nenhum dessa sociedade que se apressa em demandar ações de segurança pública — militarizada e violenta — como resposta a um suposto caos, a uma pretensa situação de insegurança generalizada e de “guerra”, e que compra o discurso midiático do escândalo. Essa mesma sociedade que, quando dados sérios lhe são apresentados faz muxoxo e volta para as manchetes escandalosas e sanguinolentas, que mostram o “inimigo” da rua, aquele que “não parece comigo” e a quem se pode desumanizar. Não me espanta, então, que dados reais sobre violência de gênero e violência doméstica não causem nenhum alarde: dentro de casa, ali do lado, sem um inimigo distante, excluir-se da cena e fazer barulho não é assim tão fácil.

Dados de opinião pública sobre esse fenômeno, então, são importantes. São também um terreno ainda complicado de explorar — pouco e mal explorado. Com dados inseguros, pior o quadro.

Então, sim, se 26 ou 65 por cento, continuaremos combatendo a violência contra as mulheres. Essa luta não é exagerada e nem criamos uma ilusão de um país de estupradores. Sabemos que estamos em uma sociedade machista e que a culpabilização das vítimas é um fato — seja em opiniões do senso comum, seja nos atendimentos por policiais, delegados, promotores, juízes… A revitimização é uma realidade do sistema de justiça criminal e não só dentro dos seus espaços oficiais de controle formal (Ministério Público, Polícia Civil e Militar, entre outros). É também realidade nos espaços sociais de controle informal (escola, família, igreja, universidade…) Ou o país do caso Uniban já se esqueceu do que se faz com uma mulher que usa saia curta?

Mulheres reagem a dados de pesquisa sobre violência. Imagem: Helga Silva/MdeMulher.
Mulheres reagem a dados de pesquisa sobre violência. Imagem: Helga Silva/MdeMulher.

O escândalo da violência silenciado

Sim, continuaremos lutando. Mas esperamos seriedade e responsabilidade na avaliação pública e oficial do fenômeno da violência de gênero. Para a militância, se 26 ou 65 por cento, nossa preocupação continuará válida e forte. Não deixaremos, porém, que essa insegurança sobre dados e pesquisas tomem conta desse tipo de estudo. Cobramos compromisso e seriedade no enfrentamento da violência.

A quem interessa desqualificar a necessidade desses dados? A quem interessam dados em que não se pode confiar? O prejuízo é apenas para o feminismo? Que prejuízos essa desinformação traz para o exercício da cidadania das mulheres? Qual deveria ser o foco nesse momento? O fato de que mulheres se levantaram contra uma realidade já conhecida, porém expressada agora em dados errados ou o fato de que dados sobre essa realidade tem sido publicamente geridos de forma insegura? O fato de que uma campanha foi feita em cima de dados errados ou o fato de que a reação usa disso para desqualificar o movimento feminista e usar das conhecidas alegações misóginas de histeria/exagero/chilique/ilusão etc. e tal?

Se querem escândalos, os dados nos dão: A cada quatro minutos uma mulher sofre violência no país. Mais de 50 mil mulheres foram vítimas de estupro no ano de 2012. Escandalosas, no entanto, são as mulheres que se manifestam contra essa realidade?

Ou será que a gente deve apenas perguntar: onde você guarda seu machismo?

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