Sobre machismos e porcentagens

Texto de Simone da Silva Ribeiro Gomes

A máxima de outrora do(s) movimento(s) feminista(s), que entoa que politizemos o cotidiano nunca fez tanto sentido. No Brasil brasileiro dos primeiros meses de 2014, mulheres negras e pobres tem seus corpos “arrastados” por seus algozes, (tra)vestidos de policiais, em uma cena que, de tão recorrente, parece ter perdido o poder de nos mobilizar, e, aprendemos essa semana “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Os alarmantes números que refletem a população entrevistada [homens e mulheres] pelo IPEA chocam por sua crueza: seguimos onerando às mulheres com os fardos do machismo.

Quando mais da metade da população de um país crê que cabe às mulheres vestirem-se de forma adequada para evitarem um estupro, entendemos a extensão da inversão cruel e cotidiana que nos vitima diariamente. A mera aceitação social do estupro, em suas formas consideradas menores, cotidianas e silenciosas, na cultura do “sarro no transporte público”, “bebeu demais, então está à disposição para o sexo alheio” e nos abusos verbais diários nos espaços públicos, já não chamam mais a atenção nos noticiários. Certo é, que como eu, a maioria das mulheres com quem convivo já foram vítima(da)s por pretensos elogios, que não passam de um dos reflexos vis do patriarcado, onde “gostosa”, “te chuparia toda” e “delícia” deveriam ser encarados como um acidente de exaltação cotidiano.

Gráfico: UOL.
Gráfico: UOL.

Dentre outras coisas que o(s) feminismo(s) nos ensinou, a homens e mulheres, entendemos que o fardo do machismo resvala em ambos. Dessa forma: “ensine seu filho a não estuprar, não nos ensine a temer”, é uma assertiva potente e transformadora pelo que não se furta à dizer. Existem vítimas e algozes, e esses, em mais um dos malabarismos cotidianos do patriarcado, parecem ser desculpados por seus olhos, cabeça e tronco, mas à quem os olhares são dirigidos, cabe a responsabilidade de cuidar para não figurar entre mais uma das vítimas diárias de violência.

Desde cedo cobrimos nossos corpos, e por conseguinte, nossas sexualidades dos comentários masculinos. Falas de quem “não conseguiu se controlar” são onipresentes nas desculpas públicas. À sexualidade masculina descontrolada, somam-se os medos da violência sexual e física, em um continuum alimentado pela misoginia tão condescendente aos ideais heteronormativos, que nos retiram dos espaços públicos, e no limite, de cada mais vez mais espaços de poder.

Na versão (pós)moderna do mito da Esfinge, deciframos desde novas o quanto somos sexualizadas como objetos do prazer alheio. E, por decifrarmos tão pronto, não somos devoradas (todas) por sexualidades descontroladas, que, no entanto, ainda controlam nossos ires e vires, as representações midiáticas de nossos corpos, espaços de poder e nossas liberdades já tão vilipendiadas.

É necessário que respeitemo-nos uns aos outros. Corpos femininos, desde cedo sujeitos a um escrutínio ostensivo e à uma vigilância pública, são corpos de seres humanos, e portanto, merecem a mesma deferência dos demais. Em um país de lentos arrastões de corpos femininos, sobretudo negros e pobres, aprendemos bem cedo, que nosso circular pelas ruas é restrito. Que nossa sexualidade não nos pertence, e que a ideologia que nos rege mesmo nos detalhes, consegue nos incutir culpa até mesmo pela ideologia que nos vitima, todas, lentamente…

Autora

Simone da Silva Ribeiro é feminista, doutoranda em sociologia (IESP-UERJ) e do time que ainda quer mudar o mundo.