Transfeminismo é a ideia radical de que mulheres trans* são mulheres

Texto de Hailey Kaas.

Eu quero que vocês leiam com bastante atenção o que essa feminista escreveu no Facebook.

Agora, tenho algumas coisas a dizer.

Prezada feminista que “não é transfóbica”, você é transfóbica! Quanto mais cedo admitir, mais cedo poderá resolver seus preconceitos – é o primeiro passo. Mulheres trans* não são homens de saia e batom que se sentem mulheres. Assim como você, mulher cis, não é simplesmente um corpo com saia e batom que se sente mulher. Sua falha, desinteresse e ignorância sobre nossas vivências é o que reproduz a ideia transfóbica de que mulheres trans* são homens de saia.

Se quiser aprender mais sobre isso, convido-a, inclusive para fazer o Curso de Introdução ao Transfeminismo que revelarei em São Paulo, no dia 15 de maio. Mas, aproveito esse espaço para dar uma aula sobre subjetividades trans* de graça.

Partindo da sua própria afirmação, que você já não se sentiu mulher e não mudou ‘porra nenhuma’, vou relembrar que o transfeminismo determina privilégios sociais com base, sobretudo, na percepção que as pessoas têm de nós. Uma pessoa que foi designada mulher ao nascer e que não se sente mulher, mas é percebida socialmente como mulher, continua sofrendo machismo. Não há um detector de genitais ou de cromossomos automático que as pessoas carregam consigo. As pessoas nos avaliam pelos elementos simbólicos-biologizantes que percebem em nós.

Sabemos, por exemplo, como a masculinidade é algo venerado e a feminilidade algo considerado falso e pior (a sua imagem de que mulheres trans* são homens de batom e saia — ilustração do seu pensamento raso sobre nós — é a reprodução dessa ideia, por sinal). Por isso, mulheres masculinas ganham privilégios de masculinidade. Ou seja, essas mulheres percebidxs como “indo” em direção à masculinidade, ganham certos (eu disse certos) “passes livres” em alguns aspectos/contextos (eu disse em alguns aspectos e contextos). Sobre esse assunto, ver misoginia no meio lésbico/butch e como mulheres lésbicas masculinas incorporam o heterosexismo dos homens cis e o usam contra mulheres lésbicas femme. Veja também esse outro texto sobre homens trans*, masculinidade e privilégio e de quebra leia sobre o mito da socialização infantil: Tropos Transfóbicos Nº 7 – Socialização infantil.

Seu pensamento sobre subjetividades trans* talvez revele seu pensamento raso sobre mulheres: somos distintas com vivências diferenciadas. Há mulheres trans* lésbicas butch, há mulheres trans* lésbicas femme, assim como butch e femmes heterossexuais ou bissexuais. Há quem prefira maquiagem. Há quem não goste de jeito nenhum. Há quem goste só de um rímel e batom ocasionais. Há quem prefira usar tops (como eu, por exemplo — super mais confortável!). Há quem goste de sutiãs com bojos de rendinhas ou estampas de animais. Há quem deteste pelos ou há quem tente se empoderar peludamente. Há quem use saia e há quem não use.

Mas, nesse ponto – que é o velho argumento de que “mulheres trans* reforçam estereótipos” e quetais – além de te iluminar sobre nossas várias diferenças (pois é você quem nos está estereotipando), quero lembrar como no espaço das clínicas médicas somos forçadas a emular uma feminilidade machista (e masculinidade machista, no caso de homens trans*). Há casos de mulheres trans* que foram de calça e tiveram seu tratamento negado. Há aquelas que só podem se afirmar heterossexuais, pois se não o forem não são trans* de verdade. Há um caso de um homem trans* que, na falha de sentar com as pernas abertas, não foi considerado um “homem de verdade” e foi excluído do atendimento nos hospitais.

Sobre esse assunto, confira a tese de doutorado da Berenice Bento, lançada no livro “A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual”. No livro, ela mostra como as respostas estereotipadas de muitas pessoas trans* eram direcionadas pela força da clínica e pelo medo de perderem a vaga no programa. Vale lembrar que esses programas, embora muito deficientes, são o ÚNICO acesso que temos a um atendimento médico direcionado e que garantirá a alteração dos documentos no futuro (através da compulsoriedade dos laudos da equipe médica). Nós sofremos com o Projeto de Gênero machista social ou nos adequamos, ou fingimos, ou ambos, senão não somos consideradas trans* “de verdade”, do mesmo jeito que você não nos considera. Você usa o mesmo critério machista que as clínicas usam, veja só.

Você não tem noção alguma do que é ser trans*, quanto menos pode afirmar como nos sentimos ou como deveríamos nos identificar, simplesmente para que você mantenha seu clubinho das mulheres direitas – aquelas que você aprova, aquelas que você julga que sofrem mais machismo e por isso merecem mais empatia, dentro de uma hierarquia de mulheres e pautas.

Voltando no que falei sobre percepção social, nós não somos percebidas como homens cisgêneros. Nós somos lidas como pessoas abjetas. Somos expulsas de casa, da escola, dos empregos. E aí está nosso “grande privilégio” de homem: não ter espaço social nenhum que nos acolha e respeite. Você acha que sua posição feminista é super “radical” e revolucionária, mas você está fazendo mais do mesmo, expulsando pessoas que são expulsas diariamente de todos os espaços sociais.

Nossa, que novidade! Que radical! Que novidade quando o ex-namorado não quis me apresentar para a família por vergonha! Que novidade quando fui espancada na escola e o professor disse que seria melhor eu pedir transferência! Chamou meus pais para conversar sobre meu comportamento! Que novidade quando meu pai me bateu ameaçando me expulsar de casa se eu não parasse de me “vestir de mulher” (aliás, seu mesmo argumento, que coincidência!). “Sorte” minha que ele morreu, né? Que novidade quando o professor me chamava toda vez pelo nome masculino e as pessoas vieram me questionar sobre meu corpo, meu genital, minha intimidade. É porque, para você, tudo bem errar pronomes e chamar pelo nome civil, pois tem “travestis se prostituindo”.

Pare de usar pessoas trans* para descarrilhar o debate sobre como você e sua transfobia nos leva ao suicídio. Pois é, quer estatísticas? Quase metade das pessoas trans* nos Estados Unidos já tentou o suicídio. E também há relatórios oficiais internacionais que mostram como o problema é grave.

De toda população LGBT, as pessoas trans* estão em maior risco de suicídio. Por quê? Ah, só porque não somos aceitas e nem respeitadas em nenhum espaço social, a mesma coisa que você está fazendo: nos negando um espaço social que também é nosso por direito. Sim, minha cara, porque queira você ou não, nós somos mulheres. Você não é a guardiã da identidade mulher, você não é mais mulher do que eu porque tem uma vagina. Você apenas é mais preconceituosa e negacionista.

Se quiser ser “radical” comece a incluir mulheres trans*, pois isso sim é radical nessa sociedade transfóbica. Seu feminismo é retrógrado, não tem nada de “subversivo” ou “radical”. O que ele tem de sobra é preconceito e reacionarismo, porque determinar quais mulheres são dignas de feminismo e de inclusão é fazer feminismo de mulheres direitas, feminismo de direitos humanos para humanos direitos – um que o machismo conhece bem, pois é o machismo que determina quais mulheres são dignas de humanidade. A vítima de estupro perfeita se personifica aqui na “mulher perfeita” digna de empatia – a cisgênera que supostamente não reproduz estereótipos (mas faça um exercício simples — conte quantas mulheres no seu perfil usam/gostam de usar saias e batons. Mas só as mulheres trans* reproduzem estereótipos né? Só vocês que são as mulheres de verdade. Com base em quê? Ah! Na vagina.

Outro discurso predileto do machismo: determinar que mulheres são vaginas ambulantes ou incubadoras. Então, pelo visto, ser mulher para você é ter uma vagina e/ou ter um útero (e/ou, pois existem mulheres cis que realizaram histerectomia – ou vai ver essas também não são mulheres?). Acho que já gastei bastante tempo, mas o que ainda permanece é meu cu caído diante do “eu não sou transfóbica”. Ativamente determina exclusão, mas “não é transfóbica”. Como quer ser chamada? TERF (Trans Exclusionary Radical Feminist) aparentemente também não pode — mesmo você se dizendo feminista radical e excluindo mulheres trans*, o que é exatamente o que significa essa sigla. Tudo o que você é nesse texto, minha cara, é transfóbica. E quando você, mulher cis, oprime mulheres trans*, você é agressora e isso não será tolerado.

Por fim, mas não menos importante, quero falar porque eu publico e vou continuar publicando denúncias sobre feministas transfóbicas. Quero que vocês entendam que não existe união de mulheres com pessoas que desejam, como veem nesse texto, ativamente nosso extermínio direto ou indireto. Queremos espaços seguros, livres de transfobia. O feminismo não tem se mostrado um espaço seguro. A todo momento temos que lidar com discursos de feministas desqualificando mulheres trans*, nos chamando de homens e estupradores, ridicularizando nossas pautas (e nossos corpos), futilizando nossas subjetividades. Não basta o machismo e transfobia dos homens cis, temos ainda que lidar com todo esse preconceito dentro do movimento.

Não preciso repetir (ou talvez sim, a ignorância parece estar em alta no meio feminista) que mulheres trans* sofrem machismo. O mesmo padrão de beleza imposto, os mesmos machismos hipersexualizantes, as mesmas cobranças de ‘castidade’, os mesmos feminicídios por causa de posse, assassinatos de travestis são também, em média, feminicídios. Parceiros matam mulheres trans* por ciúmes ou por outros motivos machistas. Sobre esse assunto indico o Trans Murder Monitoring Project e um texto já publicado por mim nesse blog: O feminicídio de mulheres trans*.

Os mesmo problemas de saia curta, vadia, puta, etc. recaem sobre nós. Também somos estupradas e não somos ouvidas – a situação é ainda pior em alguns países onde estuprar mulheres trans* não é crime. Ah, talvez seja novidade: também sofremos problema com direitos reprodutivos — homens trans* enfrentam grandes problemas para realizar um aborto e, mulheres trans* sofrem com a medicina e a justiça controlando nossos corpos em termos de reprodutividade através da esterilização forçada. Os mesmos problemas de ojeriza aos nossos genitais também existem, chama-se: transmisoginia. Pois, o pênis pode ser algo venerado socialmente se for acoplado a um homem cis. Poste imagens de mulheres com pênis e veja chover transmisoginia.

Por tudo isso, acho inaceitável que haja, em pleno 2014, feministas achando legítimo e desejável — algumas até têm prazer — a exclusão de mulheres trans*. Vale lembrar que, no passado (e até hoje), as pautas das mulheres negras eram consideradas inferiores e de menor importância. O mito da mulher que ganhou o “direito ao trabalho” nunca considerou que mulheres negras já trabalhavam há muito tempo. A cegueira feminista branca burguesa não é de hoje, só precisa adicionar “cegueira cisgênera” na conta.

Acredito que tais pensamentos devem ser combatidos em nossa militância, porque se queremos um feminismo ético e inclusivo, queremos um feminismo que leve em conta as condições de todas as mulheres, não só as que algumas feministas consideram dignas de empatia. Dessa forma, vou continuar denunciando transfobia no feminismo. Quero espaços feministas seguros. Não me calo e convido todas as pessoas trans* a se levantarem e não se calarem diante dessa violência massiva que temos sofrido desde que ousamos querer ser tratadxs que nem gente.

Transfeminismo é a ideia radical de que mulheres trans* são mulheres!

Transfeminismo é a ideia radical de que pessoas trans* são pessoas!

Símbolo do Transfeminismo.
Símbolo do Transfeminismo.

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Esse texto foi originalmente publicado em seu perfil do Facebook no dia 25/04/2014.