Texto de Daniela Andrade.
No episódio de hoje vimos um homem gay, cis, com milhares de pessoas seguindo sua página, se torcer e retorcer todo dizendo que não usa e nem usará o termo cis, pois é um termo ridículo inventado por ativistas trans* para perseguirem as pobres pessoas cis.
Ora essa, até parece que estamos xingando o cidadão de alguma coisa, quando sabemos que cis (abreviação de cisgênero) é apenas a definição de alguém que se reconhece como pertencente ao gênero o qual se foi designado quando nasceu. Ou seja, foi registrado como homem quando nasceu e se reconhece como homem, ou foi registrada como mulher quando nasceu e se reconhece como mulher: os únicos dois gêneros que a sociedade cis confere legitimidade.
Mas claro, como o termo cis está sendo reclamado por pessoas trans*, e como pessoas trans* não estão ocupando cargos de poder e destaque dentro da sociedade, não estão mobilizando grandes massas — em que pesem as raríssimas exceções, por que será que ele utilizaria esse termo, não é mesmo? Quem são essas pessoas (pessoas?) que se acham no direito de nomear o rapaz no que toca a identidade de gênero dele?!
Lembrando que frequentemente estamos falando das mesmas pessoas que fazem questão de definir a orientação sexual das pessoas trans*, evidente que por regra definirão que as pessoas trans* são homossexuais — afinal de contas, é pedir demais que a pessoa trans* tenha o direito de ter uma orientação sexual diferente.
Há o perigo de as pessoas deixarem de diferenciar a mulher trans* da cis, como “a mulher biológica” e a trans, “a mulher de verdade” e a trans, “a mulher” e a trans. Corre-se o risco de passarmos a legitimar as mulheres trans* como mulheres, e vice-versa para os homens trans*, passando a legitimarmos esses homens como homens. Corre-se o risco de que paremos de biologizar e genitalizar as identidades trans*, como se gênero fosse algo grafado em nossos genitais, em nossa anatomia. Corre-se o risco de darmos às pessoas trans* o mesmo tratamento que se dá a quem não é trans*.
E se eu me recusasse a tratar o cidadão como homem, dizendo que esse termo é ridículo? Ora essa, diriam que ridículo é o meu comportamento, pois o termo ‘homem’ já está cristalizado dentro da sociedade cis, inventado também pelas pessoas cis. E foi essa mesma sociedade cis que sentiu necessidade de diferenciar as pessoas que não se reconheciam como pertencentes ao gênero o qual foram designadas compulsoriamente quando nasceram; assim, inventaram o termo transexual — por exemplo.
Bem, se as pessoas cis inventaram um termo para designar o diferente, por que os ditos diferentes não podem nomear o grupo que lhes nomeou? Qual seria o enorme problema? Simples, é preciso lembrar que dentro da sociedade sempre há o grupo que detém o poder e que se sente no direito irrefutável de ditar as regras, e o grupo que precisa se curvar à elas.

Falar em cisgeneridade em contraposição à transgeneridade, travestilidade, transexualidade dá conta do que de fato estamos falando: do campo das identidades, dos papeis, das expressões de gênero E NÃO das orientações sexuais, como inclusive grande parte das pessoas LGBT’s querem continuar achando ao tratar as pessoas trans* como se fossem outro tipo de gay ou lésbica, um gay que se veste de mulher e quer/finge ser mulher no caso das mulheres trans* ou uma lésbica que se veste de homem e quer/finge ser homem no caso dos homens trans*.
Há o enorme perigo de se retirar as identidades trans* do limbo onde se encontram dentro de um grupo hegemonicamente dominado por homens cis, em que se fala quase que apenas de homofobia, homossexualidade, orientações sexuais e heteronormatividade; afinal, querem muitos nos convencer que transfobia, identidades de gênero, transgeneridade e cisnormatividade não existem; é tudo termo novo criado por ativistas trans* sem ter o que fazer. Aliás, por que raios essas pessoas ativistas trans* não engolem que para a sociedade somos todos e todas vistas como gays ou lésbicas?
Pois é, a gente sabe disso, e é justamente por isso que lutamos não por meros termos, pela mera semântica; mas por visibilidade no que toca a problemática e opressões específicas que as pessoas trans* sofrem. E veja, há muitas violências que as pessoas trans* sofrem e que gays e lésbicas cis não sofrem, não se trata apenas de meros termos — as palavras possuem força, elas dão direito à vida e à morte. É por meio das palavras que fazemos nascer conhecimento, curiosidade, percepção — tudo isso muito necessário nas ainda desconhecidas identidades trans* para o grande público.
As violências não somem quando não falamos delas e, para falarmos das violências é preciso especificarmos com detalhamento de que violência estamos falando, sobre o que diz respeito aquela violência, qual parcela da população ela atinge: é preciso nomear essa violência diferenciando-a das demais para que saibamos do que se está falando, ou para que possamos educar as pessoas sobre o que estamos falando.
O rapaz faz uso do velho e conhecido recurso que todo preconceituoso lança mão quando apontado seu preconceito: “mas eu tenho amigas transexuais, eu as ajudo”. Pois bem, ter amiga transexual, ter mãe transexual, ter irmã transexual, ter filha transexual não isenta você para todo o sempre de cometer discriminação e praticar opressão contra pessoas trans*. Fica a dica.
E deixa eu lembrar: a sociedade não nasceu sabendo o que era homossexualidade, ela precisou aprender — já pensou se eu usasse a desculpa de “vai ser mais um termo para sociedade aprender, vai confundir muito” para invisibilizar os gays e as lésbicas? Pois é, parece não fazer sentido quando estamos falando de pessoas cis, mas se for sobre pessoas trans* começa a fazer todo sentido do mundo para um sem número de pessoas deixarem de ensinar a sociedade que há uma diferença GRITANTE entre orientação sexual e identidade de gênero, entre violências sofridas por pessoas cis por conta da orientação sexual e por pessoas trans* por conta da identidade de gênero.
Autora
Daniela Andrade é uma mulher transexual que luta ansiosamente por um presente e um futuro mais digno às todas as pessoas que ousaram identificar-se tal e qual o são, independente daquilo que a sociedade sacramentou como certo e errado. Não acredito no certo e o errado, há muito mais cores entre o cinza e o branco do que pode supor toda a limitação hétero-cis-normatizante que a sociedade engendrou. Escreve em seu blog pessoal: Alegria Falhada. Administra a página: Transexualismo da Depressão.
Esse texto foi publicado originalmente em seu perfil do Facebook, no dia 23/04/2014.